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O livro de Telmo Vieira e o grito dos excluídos

Caminhamos céleres. Sobrepujamos obstáculos de toda ordem. Vivemos. Todavia, humanamente erráticos, tropeçamos feio e descuidamos no trato com os demais seres. Erguemos as vistas aos céus e nos perguntamos porque tanto frenesi e tanta arrogância. As respostas, às vezes duras, nos vêm, amanhã ou depois, quando já nem as percebemos. Em verdade, temos andado por esta vida afora, em círculos, tentando reparar erros aqui, ali e acolá, inclusive, aqueles cometidos por nós mesmos.

Concluí a leitura debaixo de uma torrencial chuva de lágrimas, em que pese hipérbole tão molhada, ou úmida demais. A morte se espalha pelos varadouros da vida e a terra, hoje, tem um novo dono, um homem rico que a quer apenas para a especulação fundiária.

Os meus antepassados nordestinos também vieram para este rincão inóspito sem um pingo de medo de se dar mal. Com todos eles assim aconteceu. Eram destemidos e tinham o algo mais que lhes joga nas raias do heroísmo. Como deixou registrado o Euclides, o sertanejo é antes de tudo um forte.

E a viagem do escritor se faz triste a perder de vista. Deus do céu! A denúncia é a pauta principal do livro. Fica registrado em letras fortes que o opróbrio, o sofrimento e a escravidão compulsória são marcas inerentes aos mais pobres deste mundo bizarro. Às vezes, alguns deles até pensam ser livres, quando, na realidade, não o são. O sertanejo, o índio, o seringueiro, o favelado, o boia-fria, o sem-teto, o sem-terra, dentre outros miseráveis, caminham pelas nossas estradas da existência, de sol a sol, sempre pensando no melhor que nunca vem, porque nenhum líder chega a pensar, em específico, soluções para os seus dilemas gerais. E a vida doída e carcomida passa devagar a partir das rugas precoces que o tempo e a poeira inclementes lhes impõem. Oh Deus!

É como se nós estivéssemos na pele deles, viajando em fétidos porões de navios, comendo o pão que o diabo amassou e cuspiu. Daí é que Telmo Vieira, como descendente de nordestinos, principia reflexão intensa e dolorosa sobre a saga que é o deslocar-se de tão longe em busca do eldorado que lhes daria a oportunidade de catar dinheiro com um cambito, conforme propagandeado. Coitados. Eles foram enganados a partir de quando recrutados para essa maldita vida nova. Ademais, as dívidas acumuladas ao longo da viagem e, depois, a subsistência na floresta e as formas de pagamento eram insuportáveis e lhes tiravam quaisquer possibilidades de libertar-se desse cativeiro imposto pelos seus próprios irmãos, então tornados capitalistas, porque aqui chegaram mais cedo.

Como deixavam muito claro os sertanejos lá de casa, já na chegada ao Acre, o contato com a natureza é algo assustador. Nenhum deles nunca tinha visto chuvas tão duradouras e com pingos tão grossos. A friagem matava de frio. A onça, o jacaré e a sucuri comiam gente. A cobra tirava a vida e a enchente afogava. Mas ainda havia o pior: o contato com o bicho homem. Os irmãos nordestinos ricos lhes passavam a oprimir debaixo de açoite e ameaças as mais drásticas possíveis, como aquele coronel cearense feito rico no Acre que, quando via o seringueiro que tinha saldo maior querendo atravessar o  rio para buscar os seus lucros, mandava-o, rapidamente, para o outro mundo com um tiro de uma carabina que alcançava o indigitado a mil e quinhentos metros de distância. E ainda pior: se a alma seguia em paz, o corpo era desovado na água para alimento dos peixes.

E a última fronteira do capital avança, celeremente, atropelando, sem piedade, trucidando mesmo quem lhe estiver em meio ao caminho e não quiser ser esmagado. A terra que, originalmente, pertencia aos índios, passa a ser de pessoas que os assassinaram através das tais correrias. O humano sacrificando o humano em nome do dinheiro farto, o que era perfeitamente justificado uma vez que, segundo os antigos costumes acreanos, o índio está num estágio tal que sequer pode ser considerado gente.

Em seguida, são estes mesmos  –  ditos pioneiros  –  que passam a matar, agora de fome e maus tratos, os sertanejos tornados seringueiros.

E a viagem do romancista se faz ainda mais lúgubre. Décadas de 70 e 80. O Acre, ou a última fronteira, passa então a ser explorado pelas atrocidades dos métodos próprios do capital, que agora muda de dono. Brasileiros de outras paragens, então, expulsam, também à bala, os seringueiros que nunca tiveram o direito de se dizerem donos de alguma coisa, e muito menos do rés do chão que viram prosperar pelas suas próprias mãos.

Mas tudo tende a piorar muito. Agora, com a chegada dos pistoleiros do sul e sudeste, os seringais são desocupados, os seringueiros são expulsos de onde viviam há quarenta ou até cinquenta anos, e as cidades estão abarrotadas de mendigos. A lei do mais forte prevalece, como sempre prevaleceu, num país em que os mais pobres servem apenas como bucha de canhão quando utilizados para defender os interesses dos ricos. Assim aconteceu na carnificina do Acre. Da mesma forma, ocorreu na Guerra do Paraguai. Do mesmo modo também sucedeu com os brasileiros maltrapilhos que foram enviados para as frentes de batalha na Segunda Guerra. Em suma, os ricos vencem os confrontos usando o sangue dos miseráveis afoitos e, depois, estes são jogados no esquecimento. Se não morreram na bala, que agora morram de fome.

A realidade é caótica. Sem o domínio de uma profissão urbana, os homens querem fazer qualquer coisa nas cidades e se tornam mão de obra baratíssima. As moças se prostituem a qualquer preço. Os garotos formam filas em meio à marginalidade. Os nossos heróis, então apelidados grotescamente soldados da borracha, têm direito somente ao mínimo do mínimo, só agora, a partir dos anos dois mil, quando noventa por cento deles já estão mortos. Com a sua morte, o Estado brasileiro, enfim, lucrou. O sertanejo nordestino passa a fazer parte da massa de infelizes, deserdados, excluídos dos direitos básicos que qualquer cidadão usufruiria.

Telmo Vieira, enfim, traz-nos uma mensagem drástica, como um grito que brota da garganta dos excluídos deste Brasil.

A felicidade deveria habitar os lares de todos os humanos, sem exceção. Não é justo que alguns fiquem com tanto e a superior maioria morra de fome nos nossos guetos. É preciso levar em consideração que a vida é sacrossanta e deverá estar sempre em primeiro lugar. Sem comida, bebida e moradia não se vive. Considere-se, ainda, o pleno direito de todos ao trabalho e à terra para viver. Que se instituam e se coloquem em prática preceitos básicos que falem de justiça e dignidade para todos, indistintamente.

Urge levar ao conhecimento do mundo que, aqui, também os excluídos gritam, mas também não são ouvidos há séculos, numa referência ao poema Vozes d’África, de Castro Alves. Tal como em Navio Negreiro, do mesmo poeta, destes homens e mulheres poucos são os líderes que lembram e estão dispostos a fazer algo concreto em favor das melhorias de vida dos deserdados nacionais.

Observando a relação entre o romance de Telmo Vieira e o livro Teologia Pé no Chão, de Clodovis Boff, não se pode negar que o que de melhor foi erguido no Brasil, e todas as grandes conquistas, contaram com a participação intensa e a mão de obra de escravos ou semiescravos, a exemplo do período áureo da borracha amazônica.

Preciso acreditar que os ecos desse clamor, agora, terão muito mais reverberação, porque o romance em análise não apenas aponta os problemas, como sugere as soluções.

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*Romancista, cronista, poeta e palestrante. Autor de ANJOS DO SOL POENTE (romance) e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA (crônicas), disponíveis no http://livrosfantasticosescritospormi.com > Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeia 27.  

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