A caça de subsistência de animais da fauna silvestre para consumo doméstico em comunidades extrativistas no Acre é, muitas vezes, a única alternativa de acesso a fontes nutricionais de alto valor proteico.
A tradição dessa atividade no interior do Acre remonta aos primórdios da colonização do estado. Apesar disso, poucos estudos científicos foram feitos para identificar os animais mais buscados e as formas mais comuns de caça empregadas pelos extrativistas.
Um artigo publicado em junho de 2021 na revista Biota Amazônia (v.11, n.2, p.27-30) por pesquisadores da Fundação Osvaldo Cruz (RJ), Universidade Estadual de Maringá (PR) e Universidade Federal do Acre (AC) traz informações esclarecedoras sobre essa prática no Acre.
A partir de informações colhidas por meio de entrevistas feitas com 42 famílias da Reserva Extrativista (RESEX) Cazumbá-Iracema, os pesquisadores descobriram que mais de 40 espécies de animais silvestres são caçados com regularidade.
O grupo mais buscado é o das aves, com 23 espécies caçadas. Entre as mais apreciadas, se destacaram o jacu (Penelope jacquacu), a inhambu-galinha (Tinamus guttatus), a inhambu-macucau (Crypturellus undulatus), a arara (Ara sp.) e o papagaio (Amazona sp.).
Os mamíferos são o segundo grupo em número de espécies caçadas (16), com destaque para o porco do mato (Pecari tajacu), veado (Mazama sp.), tatu (Dasypus novemcinctus), o macaco guariba (Alouatta sp.) e a anta (Tapirus terrestris). Surpreendentemente, a paca (Cuniculus paca) e a cutia (Dasyprocta sp.) não estão listadas dos animais mais caçados no RESEX. Apenas a cutiara (Myoprocta sp.).
O outro grupo caçado é o dos répteis com casco, com um único representante: o jabuti (Chelonoidis denticulata).
A pesquisa determinou quais espécies são consideradas com maior valor de uso pelos extrativistas utilizando o índice de Valor de Uso (VU), que é calculado pela divisão do número de vezes em que a espécie é citada e a quantidade de entrevistados. O valor desse índice varia de 0 a 1. Quanto mais próximo de zero, menos conhecida é a espécie, e quanto mais próximo de 1, mais conhecida e apreciada ela é pelos entrevistados.
Assim, pela ordem, as espécies com maior Valor de Uso para os extrativistas da RESEX Cazumbá-Iracema foram: porco do mato (VU=1), jabuti (VU=0,98), veado (VU=0,90), o jacu (VU= 0,86) e o inhambu-galinha (VU=0,74).
Os métodos de caça mais praticados pelos extrativistas são a espera (42,7%) e o uso de espingardas (41,7%). Os locais preferencias de caçadas são áreas de matas mais fechadas (floresta virgem), que geralmente oferecem com mais frequência e abundância – em relação às florestas secundárias (capoeiras) – fontes de alimentos para os animais, aumentando as chances de sucesso das caçadas.
A caça tipo “espera”, ou de “tocaia”, é mais usada na caça de mamíferos e geralmente acontece à noite em locais propícios, ou seja, próximo a árvores com frutos caindo ou locais de passagem de animais. Nessa modalidade os caçadores geralmente se abrigam em poleiros ou sobre árvores das proximidades e aguardam silenciosamente a chegada dos animais.
A caça com o auxílio de cachorros era praticada por apenas 9,4% dos entrevistados. Outros métodos como o uso de armadilhas para a captura de aves e pequenos roedores era ainda menos frequentes, praticados por 6,3% dos entrevistados.
Um fato inusitado demonstrado pelo estudo foi o maior consumo de aves e não de mamíferos na RESEX Cazumbá-Iracema. O normal é o contrário. Segundo os pesquisadores, isso pode ser consequência da maior abundância das aves no local. Apesar disso, a caça de mamíferos é a preferida pelos extrativistas em razão da maior massa (quantidade de carne) que eles fornecem em comparação às aves.
Embora a pesquisa não tenha abordado a questão da intensidade ou da pressão de caça exercida pelos moradores da RESEX sobre a fauna silvestre local, foi possível verificar que dos animais caçados, cinco integram a lista de espécies ameaçadas de extinção publicada pela International Union for Conservation of Nature (IUCN, 2019) na categoria “vulnerável” (jabuti, inhambu-azul, tucano, queixada e anta) e um a categoria “em perigo de extinção” (o macaco preto).
Os pesquisadores concluem o estudo afirmando que a caça de subsistência da fauna silvestre ainda é um importante para a sobrevivência dos moradores de áreas protegidas na Amazônia brasileira. Eles sugerem que programas de educação ambiental devem ser desenvolvidos para que esses moradores ampliem ainda mais seu conhecimento sobre o uso sustentável dos recursos naturais existentes nas áreas florestais que tradicionalmente exploram.
*Evandro Ferreira é pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.
Para saber mais:
IUCN. 2019. Red List of Threatened Species. Disponível em: https://www.iucnredlist.org
Leandro Siqueira de Souza, Melissa Progênio, Leilandio Siqueira de Souza, Francisco Glauco de Araújo Santos. 2021. Consumption of wild animals in extractive communities in the State of Acre, Brazilian Amazon. Biota Amazônia, v.11, n.2, p.27-30.