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Realidade: a morte pela condição de ser mulher

Nunca se falou tanto em feminicídio. Felizmente, o debate acerca do assunto tem sido mais frequente, assim como a divulgação a respeito desse crime, mas ter informação detalhada, que mostre com rigor as nuances desse cenário ainda é um desafio.

Feminicídio é o termo usado para definir assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero, ou seja, quando uma vítima morre por ser mulher. Ler essa definição em voz alta soa tão absurdo e cruel, porém, lamentavelmente, só em 2020, uma mulher foi assassinada a cada 7 horas no Brasil por sua condição de gênero, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Foram 1.250 casos de feminicídio no país, e mais da metade das vítimas foram mortas em sua própria casa. No Acre, estado com pouco mais de 900 mil habitantes, foram registrados 12 casos.

Os dados são estarrecedores e a busca por mais informações para tentar entender o que leva esses homens a matarem as mulheres, e criar políticas públicas de combate a esse crime tem sido frequente.

Como citei no artigo O ciúme literalmente mata, o Ministério Público do Distrito Federal realizou uma análise de casos de feminicídio, e constatou com base nos prontuários médicos e processos judiciais anteriores envolvendo vítimas e agressores, e ouvindo familiares de vítimas, que a partir de fatores de risco, o ciúme excessivo foi reportado em 88,2% dos casos.

Seguindo esse caminho, o Ministério Público do Estado do Acre (MPAC), por meio do Centro de Atendimento à Vítima (CAV), lançou na quinta-feira, 2, a publicação “Realidades: Feminicídio no Acre – uma realidade que se enfrenta”, que também faz um estudo aprofundado dos casos de feminicídio nos últimos 3 anos (2018-2019-2020). São estatísticas a partir dos 37 casos de mulheres que tiveram suas vidas interrompidas.

A maioria dessas mulheres sofria abusos físicos constantemente. Em 32% dos casos, os autores tinham registro de antecedentes criminais, e desses, 62% representam as motivações torpes, o tal ciúme, e não aceitavam o fim do relacionamento. Ou seja, essas mulheres não tiveram o direito de dizer chega, de dizer não, de encerrar a violência que sofriam.

Elas tinham de 14 a 51 anos, os autores dos crimes de 15 a 66 anos, a maioria, companheiros e ex-companheiros. Dos 37 crimes, 20 ocorreram nas próprias casas das vítimas, sendo no período da noite e madrugada. Rio Branco, a capital, foi cenário de 16 dos casos, representando 43% do total. A regional Tarauacá/Envira foi local de 19% das ocorrências.

Uma das vítimas morreu porque estava grávida, outras duas por causa do celular. Outras duas foram esfaqueadas quando estavam com os filhos no colo. E Maria, de 51 anos, teve sua vida tirada pelo próprio filho.

“Só se muda uma realidade quando se a conhece bem. Daí a importância do estudo, de dar conhecimento e transparência para todos (governo, sociedade civil e setor privado). É preciso saber e entender por que o Acre é o lugar menos seguro para uma mulher, quais são as causas, quem são as mulheres que estão morrendo, quem é o agressor”. Essa é uma fala da procuradora de Justiça, Patrícia Rêgo, que coordena o CAV.

Ela diz que é necessário e urgente falar sobre esse crime de ódio, machismo estrutural e as violências daí recorrentes. E que enfrentar essa realidade tão triste é dever de todos, e só a conhecendo bem, que é possível transformá-la.

Entretanto, nem sempre é fácil ter clareza nos dados. Apesar de deduzirmos que a situação econômica das vítimas é fator agravante, pois certamente a mulher que depende financeiramente do companheiro, tem mais dificuldade em qualquer tentativa de rompimento com o ciclo de violência, ainda é um obstáculo ter essas informações com precisão.

Das vítimas nesses últimos três anos no Acre, 14 foram identificadas como “do lar”, 16% delas não foram identificadas com qualquer atividade produtiva ou profissional e em 41% não foi citada qualquer informação sobre o nível econômico.

A juíza de Direito, Andréa Brito, também comenta que a atual ausência de dados técnicos sobre esse tipo de violência é um gargalo que tem impedido o aperfeiçoamento das políticas públicas de proteção às mulheres. A falta de informações coletadas com critério, rigor e regularidade temporal, segundo ela, tem impedido, em um contexto de escalada da violência doméstica e familiar, que sejam feitas comparações, cruzamento de dados e análises essenciais para a formulação de políticas públicas bem-sucedidas.

Ela diz ainda que a produção, coleta e sistematização de dados são ações fundamentais para entender os padrões de violência e também para planejar políticas baseadas em evidências. E que, estudos como esses, mostram que as instituições caminham para uma nova fase, que é a de trabalhar com evidências, pois é preciso ter dados objetivos e confiáveis para sabermos onde queremos chegar.

Independe de qualquer número, uma coisa é certa, “é indispensável que à mulher vítima e a sua família seja conferido tratamento humanizado”, como bem colocou a desembargadora Eva Evangelista, coordenadora Estadual das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar, que também contribui com a publicação “Realidades”, falando das ações realizadas pelo Poder Judiciário acreano no combate à violência contra a mulher.

Digo isso, por ainda existir muita resistência da mulher em denunciar o agressor, exatamente por ela não sentir-se acolhida ou segura diante do sistema de Justiça. Certamente, quando a denúncia é oficializada e se o sistema de segurança e justiça atuar de forma eficaz, as chances são muito maiores de evitar que elas tornem-se vítimas de feminicídio, afinal, os estudos apontam que antes das vítimas serem assassinadas, elas sofreram constantes agressões. É como se o alarme tivesse sido disparado várias vezes antes do fato mais trágico ter acontecido e ninguém tivesse escutado.

Por Andréa Zílio – Comunicadora
Agnes Cavalcante: