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Bora falar de Casamento às cegas de uma vez?

“A gente se faz há quanto tempo?”. Ouvi essa pergunta de uma analisanda há algumas semanas. Desde então me pego distraída pensando na maneira como ela a formulou. É uma construção curiosa e rica. A dúvida dizia respeito ao próprio processo. “Quando comecei a análise?”, era o que queria saber.

Lembrou-se, e nos lembrou de carona, de que é nas relações que nos fazemos. É no outro e com o outro que nos tornamos possíveis; é a partir da mãe, o primeiro outro – sendo essa mãe não necessariamente a que pariu, mas a que faz função materna. Mas não só dela, nos fazemos a partir de todos os nossos: os parentes, os amigos, os colegas da escola, do trabalho, a analista, a moça do Uber, o porteiro, os vizinhos… os amores.

E aí é que entra o Casamento às cegas, versão brasileira do reality show da Netflix que foi lançada no comecinho de outubro. A coisa toda é difícil de assistir. A começar pela premissa de colocar um tanto de gente junta para fazer encontros onde não é possível ver ou encostar em quem divide com você a mesma experiência; a busca de encontrar alguém para casar. Sim, você leu certo, casar. Em pouquíssimos encontros, ocupando cabines diferentes, pedidos são feitos e promessas de amor eterno são trocadas. Juro.

Para além do casting trazer somente jovens, héteros, de aparência padrão – como se o amor estivesse reservado para essa única fatia da sociedade – para além da escolha, a dedo, de um grupo masculino com comportamentos para lá de questionáveis, deploráveis até, está posta a grande questão: se até mesmo para nos construirmos há de se relacionar com o outro, o que nos faz acreditar que dá para construir uma dupla sem relação?

Das tais cabines, os casais recém-formados experimentam uma semana de lua de mel antecipada, e outras três de convívio em um flat alugado pela produção. Conhecem as famílias uns dos outros, os amigos. Até o dia em que, vestidos (fantasiados?) de noivas e noivos, se colocam diante de um juiz e seus convidados para confirmarem (ou não) o enlace. O programa diz exatamente disso: a fantasia. O querer algo com alguém antes mesmo de saber quem é esse alguém, o ter o retrato feito e pendurado na parede antes mesmo de achar com quem posar para ele.

De todos os personagens de Casamento às cegas, o que mais me chamou a atenção foi o pai de um dos noivos. Em uma das cenas ele diz que a recém-nora é mulher demais para seu filho. A fala que, a princípio, pode parecer desleal é, das que foram veiculadas, a mais coerente. Esse moço teve um lampejo de concretude em meio a um roteiro que poderia estar classificado quase que como realismo fantástico.

Mas sabe por que o quase? Porque, geralmente, o que mais nos constrange, o que mais nos espanta, é o que reconhecemos em nós. Sei que vocês não aguentam mais me ouvir dizer isso. Mas aquele porta-retrato com um espaço em branco pode estar sim pendurado na sua parede. Lembra da Taylor Swift, “But I’ve got a blank space, baby, and I’ll write your name” (em tradução livre: eu tenho uma lacuna, querido, e nela escreverei seu nome)? Pois então. Quero ouvir o que vocês acharam. Quem não assistiu – e tiver estômago, claro – assista. Muitas pautas boas. Boa semana queridos.

Roberta D´Albuquerque é psicanalista, autora de Quem manda aqui sou eu e escreve semanalmente para A Gazeta do Acre e outros 17 veículos no Brasil, Estados Unidos e Canadá.

paula: