Depois de haver sido chamado à atenção pelos oitocentos deslizes, foi suspenso, expulso, demitido, chutado, mandado ir embora e exonerado do relacionamento. Ele, enfim, se foi por aí afora, em trajes galantes, num carro bacana, ou em um boeing sete três sete; perfume leve sofisticado, em busca de amor e paz, como se isso fosse fácil encontrar; cheio de bossa, ginga no andar, samba no pé e flores nas mãos para oferecer a quem bem o merecesse, ou não. Deixa pra lá. Também não importa, ou pouco adianta. Ele se tornou racional demais.
Jamais a alma ladina e débil mental pensou viver época tão assim-assim, ou sei lá como. É um horror. Indóceis. Delírio geral no hospício globalizado. Povo mente que cai pra frente. Os espíritos driblam a realidade, desbragadamente, e sem nenhuma vergonha, e as verdades enganam feito as prostitutas do arrebol já citadas nestas tantas tagarelices. As pessoas não são elas mesmas. As máscaras virtuais – aquelas engendradas através do celular – que elas se impõem talvez nem as valorizem tanto, mas desvalorizem, posto que todos sabem que a realidade das tripas e dos fatos é completa ou ligeiramente outra. Os filtros retocam as fotografias e todas as moçoilas daquela freguesia parecem ser o que há de mais belo na grandiosidade do universo. Só que não.
Mocinha de um condado próximo engendrou uma fotografia linda e tascou na rede social. O contador de histórias, sagaz feito o lobo da estepe – numa referência a Herman Hesse – curtiu aquela lindeza amazônica em formato mignon e sapecou um poema paupérrimo nos comentários gerais. Bateu e colou feito grude de goma de macaxeira. E foram e vieram no palavrado e começaram o chamego via internet. Uma foto era sempre mais bonita que a outra, e ele se encantou geral. Caiu de quatro. Combinaram, pois, um fim de semana no exterior. (A Bolívia é um luxo só.) Ele se arrumou todo com a intenção de dar à princesa o que havia de melhor ao seu alcance. O carrão ficou um brinco. Foi feita a reserva no melhor hotel, aquele da praça central. No dia e no local marcados, eis que a moça apareceu na real, sem filtro e sem retoques, mas humílima nas suas roupinhas coladinhas ao corpo escultural, belíssimo. A educação exigiu e ele não se fez de rogado. Abriu a porta e ela adentrou o bólido japonês. Um luxo só. Mas ela não era a cinderela que ele esperava. Mesmo assim, tudo foi feito dentro dos mais rígidos padrões de cavalheirismo e cordialidade. Na dormida e até muito antes, nos dois pernoites, eles ficaram bem juntinhos, em conchinha e sem roupa alguma. Uma cena de novela cabocla. E veio o Domingo. De volta do passeio insólito, já na capital, ele se despediu cortesmente e ela se foi num táxi dizendo que em breve voltaria. Não voltou. Talvez não mais queira voltar. Ela viu no olho dele estampado tênue desapontamento. Ambos foram vítimas do avanço tecnológico que faz o amor escorregar por entre os dedos, como bem anotou o filósofo Zygmunt Bauman, no livro Modernidade Líquida.
Ô povo doido. Homens e mulheres não fazem mais amor e tão somente copulam. Basta o sexo a qualquer custo, ou ao preço de uma mercedez cinza, ou de uma ferrari vermelha. A humanidade pirou geral, afora alguns que observam, anotam e transformam tudo em crônicas dos dias mais bizarros de que se tem notícia.
Foi talvez por essa época que, saída de um conto de fadas, apareceu-lhe a baby sitter mais bela de que se tem notícia por este mundo de meu Deus. Ela foi chegando e lançando âncora no mar de emoções restrito ao coração do poeta de ocasião. Ele não se fez de astuto e se apaixonou perdidamente, logo ali na mesma hora, naquela esquina. Ela retribuiu os carinhos intensos e prometeram dúzias de crianças estudantes dos melhores colégios da freguesia. Apaixonaram-se mesmo. Planejaram construir um pequeno sobrado ou chalé na rua tal. Viveriam ali o idílio quixotesco, rocambolesco, sim, porque ela, quando ultrapassava as seis latinhas de cerveja, quase virava bicho do outro mundo. Pense numa mulher braba.
Na estada em um pequeno pub da rua das cabriúvas, cumprimentou-os um casal conhecido dele, a quem apresentou a consorte e quase noiva. Trocaram afagos e eles se foram. Nem bem dobravam a esquina e a braba disse que o poeta arrojado estivera pregando cobiçosos olhos no derrière da esposa do amigo, o que, absolutamente, era verdade. Barraco dos mais estapafúrdios possíveis. Os ânimos se acirraram mas ele os conteve e os arrefeceu com a paciência de um diplomata tibetano. Veio, então, a peste bubônica e o amor se escafedeu. Já era.
Houve ainda o caso de uma moça que estava noiva há uma década e o noivo nem se importava com a situação vexatória para ela. Era muito tempo para um noivado sem futuro e a moça, que contava mais de quatro décadas, pulou a cerca e foi ouvir os poemas do versejador do raio que o parta. O rapaz soube e, em três meses, já estavam casados. Este, sim, um aspecto positivo no currículo do anotador das estrelas. Grandes coisas.
As redes sociais trazem mesmo o inusitado. Já na sexta década, o poeta e ilusionista viveu uma experiência que lhe fez colocar fumaça pelas ventas. Algo bastante comum entre os modernos, mas incomum para quem já avançou um pouquinho mais no número de janeiros. Da experiência, como sempre, foi herdada uma lição: o medo e a precaução são os nossos melhores companheiros. Um chama o outro e, juntos, os três, pode-se pegar o melhor caminho.
A beldade era expert no ramo da maquilagem. Além de extremamente bonita, dava cursos de make up, o que a tornava resplandecente e a sua presença chamava logo a atenção dos sempre sequiosos circundantes.
E o romance engatou de uma forma rápida e objetiva. Logo-logo prometeram-se ou juraram amor eterno. A relação virou um fogaréu de mil labaredas. O bicho pegava e era de noite e era de dia. Veio, então, uma pequena contrariedade resultante de uma atitude do patrão que lhe surrupiara algum dinheiro. Ela ficou muito brava e disse que não mais trabalharia para aquele homem, que era justamente o dono da loja de produtos de beleza. Ao chegar em casa, não olhou mais para nada. Viu na bolsa da mãe uns comprimidos tipo barbitúrico e tomou um deles. Mais tarde da noite, não lembrava da ação anterior e tomou mais outra pílula. Resultado: passou quarenta e oito horas dormindo, com a mãe na cabeceira sem saber o que fazer. Não morreu.
O anotador de tudo ficou apavorado com a situação e deu por encerrado o relacionamento. O medo era que, já na eventual companhia dele, por qualquer motivo irrisório, ela resolvesse aumentar o número de comprimidos. Algo grave poderia acontecer e a culpa seria jogada nele. Não havia outro caminho. Engatou marcha ré, pegou o beco e foi-se embora. Como no ditado antigo, ou a língua ou o beiço. Partiu, academia.
A academia sempre será o mundo todo particular do Zé das Arreatas,o aqui tratado anotador de qualquer coisa. Já tinha e ainda tem fixação pelas atividades físicas. Não quer ir quatro dias por semana, mas cinco ou seis. Não quer ficar lá apenas uma hora, mas, no mínimo, duas ou três. Ele segue o horário do aposentado. Há cinquenta minutos de alongamentos estilo pilates. Há uma hora e vinte de musculação. Mais quarenta de bike para o fortalecimento dos joelhos, sem contar com os quinze ou mais minutos gastos na resenha, este o novo apelido dado para a fofoca que não deixa de rolar nesses ambientes poli saturados.
Mas a morenaça protuberante sabia de tudo isso; dessas manias saudáveis adjungidas pelo milagroso açaí. E, mesmo assim, a moça da primeira fila dos bancos da igreja estava a exigir do gajo imponderável muito mais. Por três semanas a fio, ela chamou o Zé para uma cervejinha na terça, que seria emendada com a da quarta, e assim por diante. Mas ele resistiu heroicamente. Ela não se importava com a condição e a opção atlética do contador de histórias, aqui apelidado pena de ouro. E mais um relacionamento degringolou. Foi-se.
Uma loura linda de nome Luciana Heineken, amazonense de Santa Isabel do Rio Negro e vendedora de joias, disse gostar de ir para a balada de quarta a Domingo, e sempre nos rendez vous mais caros daquela redondeza quadrada. Também não evoluiu. Fica difícil para um atleta quase avô que busca equilibrar-se nos saltos para não cair geral no vício gostosíssimo do chope. Oras bolas.
A Marilu Avestruz queria chegar na sexta à noite e partir na segunda à tarde. Já havia até calcinhas e sutiãs pendurados no banheiro, e escova de dentes no armário. Bebia mais que um gambá. Gostava de camarões mexidos ao alho e óleo. Chegava toda prazenteira, exalando perfumes maravilhosos e já pedia uma gelada. Sempre tinha. Ia-se depois de uma manhã inteira retocando as unhas dos pés e das mãos. Havia um almocinho frugal à base de verduras e grelhados pedido de um estabelecimento chamado Delícias da Lu.
Ainda naquele mesmo ano, apareceu no feed moça educadíssima que queria que ele fosse à casa dela, mas se negava a dar o endereço. Quando ele, enfim, lá chegou, já estava cansado de adular a moça por mais de vinte e quatro horas. E desistiu.
Numa hora dessas um tanto quadradas, ainda apareceu uma senhorinha de trinta e muitas voltas, mimadíssima, que queria dar ordens a um bon vivant já na sexta década. Assim do estilo faça isso e não faça aquilo; coma isso e não coma aquilo; bote a boca onde bem entender. Ah, as mandonas são tristes. É muito complicado mesmo.
Um dia de um ano qualquer deste século doido, ele se apaixonou, verdadeiramente, por uma moça pálida e bela nos seus olhos repuxadinhos e fantásticos. Ela falava em futuro e a calma morava no âmago dele. Ela comentava sobre carros e apartamentos na belacap; ele se contentava com um hotelzinho estilo ponta de estrela em Botafogo. Mas o amor acendeu e ele viveu tórrido affair que não durou três meses e uma motocicleta honda. Foi daí que surgiu o poema Seus Olhos, ganhador de um prêmio nacional.
Sem nunca exatamente se desentender com quem quer que seja, um dia, essa dos olhinhos lindos, moça séria, estudante da universidade federal, depois de alguns quilos de ironias, numa segunda-feira sem graça, apontou-lhe o dedo na cara e disse:
– Não me venha com deboches nem ironias.
Ele simplesmente foi embora e nunca mais voltou. Fez um ato de contrição e saiu pensando: sou irônico desde as fraldas; debochado eu fiquei depois dos dez de idade, quando a vida já sorria em gargalhadas estridentes em rendez vous de alguma categoria. Foi justamente esta a época em que ele começou a falar sozinho. Às vezes, no meio da rua, a alma ficava ditando as coisas e ele anotando. Pura poesia.
Ela era uma religiosa arraigada dessas que batem de porta em porta vendendo a revista Despertai. Um dia, veio dizer que do mundo ele nada entendia. Então, a ironia em pessoa mandou uma resposta bem ao modo pachola, debochado e sacana a partir do tutano:
– Logo eu, que sou mundano, boêmio, sambista, sacana, notívago, espaçoso, descartável e débil mental. Repara!
E ele percebeu, pois, que havia pedido aos céus uma namorada, ou uma amiga estilo cama, mesa e banho, mas as enviadas foram uma ou dez doidas sempre com um parafuso a menos e num período de dois ou três anos.
Em verdade vos digo que o risco que corre o pau corre o machado. O Zé das Arreatas escolheu que escolheu que escolheu e ficou só, ou quase. Só não amarga solidão autônoma, porque hoje em dia há, entre as moderninhas, as moças do ramo das ficantes, que são exatamente as amantes casuais em busca de um soldo mais digno, ou qualquer coisa que o valha. E sempre vale à pena.
Hoje, ele dialoga muito bem com a solidão. Rodeia-se de livros. Continuará habitué da academia por mais três décadas. Vai à caça às borboletas e mariposas, todas as sextas à noite. Sempre captura, mesmo que seja via web. Almoça acompanhado aos sábados e domingos. E já está muito bom. Nem é preciso engavetar o tráfego e o passeio intergaláctico.
*Romancista, cronista, poeta e palestrante. Autor de ANJOS DO SOL POENTE (romance) e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA (crônicas), disponíveis pelo 68 99224 7231 (WhatsApp). Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeia 27.