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Minhocas na cabeça

Íamos, a Lola e eu, pela calçada da Praça Marechal Deodoro, cada uma em sua bicicleta a caminho do Parque Minhocão, era domingo e fazia sol. Antes de ser parque (ainda que, por agora, o seja somente aos fins de semana e feriados), o Minhocão era o Elevado Presidente João Goulart, antes ainda foi o Elevado Presidente Costa e Silva – veja bem. Foi construído a pouquíssimos metros das janelas dos prédios que ladeiam a estrutura. E sempre que passo, pertinho delas, fantasio a quantidade de poeira que enfrentam os seus moradores, quase sempre, espirro numa alergia respiratória psicológica.

Mas era domingo e fazia sol, lembram? Pedalaríamos. Era a endorfina, ainda psicológica, que me visitava. No caminho de nossa programação, cruzamos um grupo de três homens e um cachorro deitados no chão. São muitos os homens, mulheres, crianças e cachorros nas ruas do bairro.  Embora este grupo fosse pouco parecido com os outros que encontramos antes e depois. Ele trazia consigo mais do que a fome, e as demais consequências do descaso do poder público. Entre os homens e o cachorro, havia um osso. Um osso de mais de um metro de comprimento, ainda sujo de sangue. Além de comprido, era larguíssimo, muito branco quase vivo de tão fora de contexto.

O cachorro não roía o osso, os homens não se afastavam ou se aproximavam dele, era como se fosse parte óbvia do conjunto. Pelos poucos segundos que dividimos o mesmo espaço, eles, a Lola e eu, a imagem entrou rasgando meu olho, me deixou na dúvida de a que bicho pertencia aquela estrutura. De a que tipo estrutura, pertencíamos nós seis.

Atravessamos em direção ao parque e demos por começado o passeio. Delícia total. O Minhocão estava cheio, mas não muito. O sol estava quente, mas não muito. Nós estávamos juntas, felizes, soltas. Conversamos, cantamos, observamos quem passava a pé, de patins, de bicicleta, e de skate. Aliás, me chamou atenção um casal jovenzinho, lindos os dois, que cruzaram o trajeto todo de skate e de mãos dadas, mais de uma vez. Além dos que passavam, olhamos também os que ficavam. As moças de biquíni, os rapazes sem camisa deitados nos banquinhos se empapuçando de vitamina D. O domingo foi puro frescor.

Até que as coxas reclamaram as subidas e resolvemos voltar pra casa. No caminho de volta, permaneciam imóveis os homens, o cachorro e osso, que agora me pareceu ainda maior. E me pergunto como pude esquecer deles nas últimas horas. Como um elevar-se a tão poucos metros nos faz deixar pra trás a dor do outro? Minhocas na cabeça. Muitas. Boa semana, queridos.

paula: