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Quem julgará os assassinos?

Rotular Vladimir Putin como criminoso de guerra por Joe Biden, que fez lobby para a guerra do Iraque e apoiou firmemente os 20 anos de carnificina no Oriente Médio, é mais um exemplo da hipocrisia moral que se espalhou pelos Estados Unidos. Não está claro como alguém julgaria Putin por crimes de guerra uma vez que a Rússia, assim como os Estados Unidos, não reconhece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional em Haia. Mas a questão não é a justiça. Políticos como Biden, que não aceitam a responsabilidade pelos documentados crimes de guerra, fatos que reforçam suas credenciais morais ao demonizar seus adversários. Eles sabem que a chance de Putin enfrentar a justiça é zero. E sabem que a chance de que eles próprios enfrentem a justiça é igualmente nula.
Todos sabem quem são os mais recentes criminosos de guerra, entre outros: George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, o general Ricardo Sanchez, o ex-diretor da CIA George Tenet, o ex-procurador geral adjunto Jay Bybee, ex-procurador geral adjunto do escritório de assessoria jurídica John Yoo, que criou a estrutura legal para autorizar a tortura; os pilotos de helicóptero que mataram civis, incluindo dois jornalistas da Reuters, no vídeo Collateral Murder lançado pelo WikiLeaks.
Mas, como na Rússia de Putin, aqueles que expõem estes crimes são silenciados e perseguidos. Julian Assange, embora não seja um cidadão norte-americano e seu site WikiLeaks não seja uma publicação com sede nos EUA, é acusado sob a Lei de Espionagem dos EUA por tornar públicos numerosos crimes de guerra dos EUA.
Exigir justiça para os ucranianos, como efetivamente se deve fazer, também devemos exigir justiça para o milhão de pessoas mortas – 400 mil das quais não eram combatentes – por invasões, ocupações e ataques aéreos no Iraque, Afeganistão, Síria, Iêmen e Paquistão.
Devemos exigir justiça para aqueles que foram feridos, ficaram doentes ou morreram porque destruímos hospitais e infraestrutura. Devemos exigir justiça para os milhares de soldados e fuzileiros que foram mortos, e muitos outros que foram feridos e vivem com deficiências para toda a vida, em guerras lançadas e sustentadas por mentiras. Devemos exigir justiça para os 38 milhões de pessoas que ficaram desabrigadas ou se tornaram refugiadas no Afeganistão, Iraque, Paquistão, Iêmen, Somália, Filipinas, Líbia e Síria, um número que excede a soma de todos os desabrigados em todas as guerras desde 1900, excetuando-se a Segunda Guerra Mundial, de acordo com o Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos da Universidade de Brown. Dezenas de milhões de pessoas, que não tinham nenhuma ligação com os ataques do 11 de Setembro, foram mortas, feridas, perderam suas casas e viram suas vidas e suas famílias destruídas por causa de nossos crimes de guerra. Quem chorou ou chora por eles?

Todos os esforços para responsabilizar os criminosos de guerra foram rejeitados pelo Congresso, pelos tribunais, pela mídia e pelos dois partidos políticos no poder. O Centro de Direitos Constitucionais, impedido de abrir processos nos tribunais norte-americanos contra os arquitetos dessas guerras preventivas, que são definidas pelas leis pós-Nuremberg como “guerras criminosas de agressão”, apresentou moções nos tribunais alemães pedindo a responsabilização dos líderes norte-americanos por violações grosseiras da Convenção de Genebra, incluindo a autorização de tortura em prisões secretas, como Guantánamo e Abu Ghraib.

Aqueles que têm o poder de impor o Estado de direito, de responsabilizar nossos criminosos de guerra, de nos redimir por crimes de guerra, direcionam o ultraje moral exclusivamente à Rússia de Putin.
“Atingir intencionalmente os civis é um crime de guerra”, disse o Secretário de Estado Anthony Blinken, condenando a Rússia por atacar locais civis, incluindo um hospital, três escolas e um internato para crianças deficientes visuais na região de Luhansk, na Ucrânia. “Estes incidentes se juntam a uma longa lista de ataques a locais civis, não militares, em toda a Ucrânia”, disse Blinken. Beth Van Schaack, uma embaixadora para a justiça criminal global, fará todos os esforços no Departamento de Estado, disse Blinken, para “ajudar os esforços internacionais para investigar crimes de guerra e apontar os responsáveis”.
Esta hipocrisia coletiva, baseada nas mentiras que contamos sobre (e para) nós mesmos, é acompanhada de enormes remessas de armas para a Ucrânia.
Alimentar as guerras por procuração foi uma especialidade da Guerra Fria. Voltamos ao mesmo roteiro. Se os ucranianos são combatentes heroicos da resistência, o que dizer dos iraquianos e afegãos, que lutaram tão valentemente e tão obstinadamente contra uma potência estrangeira que era tão selvagem quanto a Rússia? Por que eles não foram incensados? Por que não foram impostas sanções aos Estados Unidos? Por que aqueles que defenderam seus países da invasão estrangeira no Oriente Médio, incluindo palestinos sob ocupação israelense, não receberam também milhares de armas antitanque, armas antiaéreas, helicópteros, zangões Switchblade ou “Kamikaze”, centenas de sistemas antiaéreos Stinger, mísseis Javelin antitanque, metralhadoras e milhões de munições? Por que o Congresso não se apressou em passar um pacote de US$ 13,6 bilhões para fornecer assistência militar e humanitária, além do US$ 1,2 bilhão já fornecido aos militares ucranianos, para os resistentes do Oriente Médio?
Os crimes de guerra não contam, e as vítimas de crimes de guerra também não. E esta hipocrisia torna impossível um mundo baseado em regras, um mundo que obedeça ao direito internacional.
Esta hipocrisia não é nova. Não há diferença moral entre o bombardeio de saturação que os EUA realizaram sobre populações civis desde a Segunda Guerra Mundial, inclusive no Vietnã e no Iraque, e o alvo dos centros urbanos pela Rússia na Ucrânia ou os ataques de 11 de setembro ao World Trade Center. Morte em massa e bolas de fogo no horizonte de uma cidade são os cartões de visita que nos restam em todo o mundo há décadas.

O alvo deliberado de civis, seja em Bagdá, Kiev, Gaza ou Nova York, são todos crimes de guerra. O assassinato de pelo menos 112 crianças ucranianas, a partir de 19 de março, é uma atrocidade, mas o mesmo aconteceu com o assassinato de 551 crianças palestinas durante o ataque militar de Israel a Gaza em 2014. Assim como a matança de 230 mil pessoas durante os últimos sete anos no Iêmen devido a campanhas de bombardeios e bloqueios sauditas que resultaram em fome massificada e epidemias de cólera. Onde estavam os apelos para uma zona de exclusão aérea sobre Gaza e o Iêmen? Imagine quantas vidas poderiam ter sido salvas.

Os crimes de guerra exigem o mesmo julgamento moral e responsabilização. Mas não é o que acontece. E não acontece porque temos um padrão para os europeus brancos e outro para os não-brancos, em todo o mundo. A mídia ocidental transformou em heróis os voluntários europeus e americanos que se reúnem para lutar na Ucrânia, enquanto os muçulmanos do Oeste que se juntam aos grupos de resistência para lutar contra os ocupantes estrangeiros no Oriente Médio são criminalizados como terroristas.

Putin tem sido impiedoso com a imprensa. Mas também aliado, o governante saudita de fato, Mohammed bin Salman, que ordenou o assassinato e esquartejamento do colega Jamal Khashoggi, que supervisionou uma execução em massa de 81 pessoas condenadas por delitos criminais. A cobertura da Ucrânia, especialmente depois de ter passado sete anos noticiando as agressões assassinas de Israel contra os palestinos, é outro exemplo da divisão racista que define a maior parte da mídia ocidental.
A Segunda Guerra Mundial começou com um entendimento, pelo menos da parte dos aliados, de que empregar armas industriais contra as populações civis era um crime de guerra. Mas 18 meses após o início do conflito, os alemães, americanos e britânicos estavam bombardeando incessantemente as cidades. Ao final da guerra, um quinto dos lares alemães havia sido destruído. Um milhão de civis alemães foram mortos ou feridos em bombardeios. Sete milhões e meio de alemães foram desabrigados. A tática de bombardeio de saturação, ou bombardeio de área, que incluiu o bombardeio de Dresden, Hamburgo e Tóquio, que matou mais de 90 mil civis japoneses em Tóquio e deixou um milhão de pessoas desabrigadas, e a queda das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que tirou a vida de 129 mil a 226 mil pessoas, em sua maioria civis, tinha o único propósito de quebrar o moral da população através da morte em massa e do terror. Cidades como Leningrado, Stalingrado, Varsóvia, Coventry, Royan, Nanjing e Roterdã foram devastadas.
Os arquitetos da guerra moderna, todos eles, transformaram-se em criminosos de guerra.

Os civis em todas as guerras desde então têm sido considerados como alvos legítimos. No verão de 1965, o então Secretário de Defesa Robert McNamara chamou os bombardeios ao norte de Saigon que deixaram centenas de milhares de mortos de um meio de comunicação eficaz com o governo de Hanói. McNamara, seis anos antes de sua morte, ao contrário da maioria dos criminosos de guerra, teve a capacidade da autorreflexão.
A guerra industrial destrói os sistemas de valor existentes que protegem e alimentam a vida, substituindo-os pelo medo, pelo ódio e pela desumanização daqueles que somos levados a acreditar que merecem ser exterminados. Ela é impulsionada pelas emoções, não pela verdade ou pelos fatos. Ela apaga nuances, substituindo-as por um universo binário infantil de nós contra eles. Soterra narrativas, ideias e valores dissonantes e vilipendiam todos aqueles que não se juntam ao uníssono nacional que substitui o discurso e o debate civil. É levada adiante como um exemplo da marcha inevitável do progresso humano, quando na verdade nos aproxima cada vez mais da destruição em massa em um holocausto nuclear. Ela ridiculariza o conceito de heroísmo individual, apesar dos esforços febris dos militares e da mídia de massa em vender este mito a jovens recrutas ingênuos e a um público crédulo. É o Frankenstein das sociedades industriais. A guerra, como Alfred Kazin advertiu, é “o propósito último da sociedade tecnológica”. Nosso verdadeiro inimigo é interno.
Historicamente, aqueles que são processados por crimes de guerra, seja a hierarquia nazista em Nuremberg ou os líderes da Libéria, Chade, Sérvia e Bósnia, são processados porque perderam a guerra e porque são adversários dos Estados Unidos.
Não haverá nenhum processo contra os governantes da Arábia Saudita pelos crimes de guerra cometidos no Iêmen ou contra os líderes militares e políticos dos EUA pelos crimes de guerra que cometeram no Afeganistão, Iraque, Síria e Líbia, ou uma geração antes no Vietnã, Camboja e Laos. O massacre em massa da guerra industrial, a incapacidade de nos responsabilizarmos, de vermos nosso próprio rosto entre os criminosos de guerra que condenamos, terá consequências sinistras. O autor e sobrevivente do Holocausto Primo Levi entendeu que a aniquilação da humanidade do outro é um requisito que precede sua aniquilação física. Tornamo-nos cativos de nossas máquinas de morte industrial. Políticos e generais brandem sua fúria destrutiva como se fossem brinquedos. Aqueles que denunciam a loucura, que exigem o Estado de Direito, são atacados e condenados. Estes sistemas de armas industriais são nossos ídolos modernos. Nós adoramos suas proezas mortíferas. Mas todos os ídolos, nos diz a Bíblia, começam por exigir o sacrifício dos outros e terminam em autos sacrifício apocalíptico.

Beth Passos
Jornalista

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