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O velho pároco

Tornara-se francamente admirado. Não se furtava um sorriso a nenhuma criança ou adulto, apesar do semblante rústico das gentes oriundas do sertão ressequido lá bem distante. Concedia a bênção segundo a tradição, casava e batizava perante as leis de Deus e as dos homens, e ia muito além nos seus afazeres. Não era apenas um religioso comilão, letárgico, fincado numa paróquia de bairro. Era vigoroso e trabalhador. Pensava o futuro de todos como se fosse o dele mesmo. Fizera-se caçador, parteiro, psicólogo, construtor, contador de embustes, aviador e até mecânico de um avião monomotor que lhe fora doado pelos graúdos da nação.

O velho arrebanhador de almas brandas dificilmente usava batinas. Agora, pois, trajando macacão vermelho e chapéu chinês de funil, participava, entusiasticamente, enquanto espectador, de um acontecimento esportivo dominical, em tarde de outono. Era homem cheio de vigor e o suor lhe escorria pela testa e pelos braços fortes pelo mínimo esforço que fizesse. Era feliz, porque o seu papel estava sendo muito bem desempenhado, num palco em que era ajudado e ajudava a todos.

Num desses dias mais felizes, houvera visitado a cidade vizinha. Fora a uma fazenda de gado dar a bênção ao empreendimento. Contara, rejubilado, as suas anedotas e aventuras rocambolescas para uma plateia ávida pelas tiradas sempre cheias de humor e sutilezas de todos os tipos. De volta, houve por bem voar em meia rasante a bordo do seu teco-teco prateado. Faltava pouco para a uma da tarde e centenas de crianças e adolescentes rumavam para as escolas, todos vestidos em camisas brancas, calças ou saias azul marinho, sapatos e meias pretas, em nome da ordem. Um primor. Aquelas pessoas o orgulhavam e o faziam voar cada vez mais alto, inclusive, em sonhos e em projetos grandiosos, dentre outas aventuras mais.

Aos domingos, então, ele tocava ao harmônio e entoava, em voz grave de tenor clássico, os cânticos próprios dos eventos religiosos por ele dirigidos. Num desses dias, recordando o voo por sobre a cidade, ele se fez brilhante, uma vez mais, no seu sermão sempre eivado de histórias miraculosas e metáforas extremamente redondas e lúcidas.

Em palavras entrecortadas pela emoção, ele falou do sentimento que foi, do alto, ver todos aqueles jovens caminhando para as instituições de ensino em busca de mais e mais conhecimentos. A cidade, segundo ele, estava a se tornar um celeiro de homens e mulheres de grande prestígio e sabedoria. Bradou, a plenos pulmões, que muitos ali ainda veriam que, um pouco mais tarde, tudo tornar-se-ia realidade cristalina como os céus rasgados pelo monomotor translúcido. Uma bênção. Tanto disse, que tudo findou por acontecer, e não se haviam passado tantos anos. Vivo ele ainda estava, quando as coisas boas começaram a se tornar reais.

A divina providência, que emanava e irradiava futuro e boas primícias para todos os lados, estava a cumprir o papel a que se destinara. Em verdade, há muito tempo tornara-se uma espécie de farol a iluminar a cidade e a prover a todos dos conhecimentos necessários à vida feliz.

Não se sabe por que cargas d’água, o vigário passado na casca do alho, embatinado com as cores do Advento, emendou o sermão brilhante com uma história supimpa com o objetivo de levar os assistentes das lágrimas ao riso em fração de segundos.

Segundo ele, as caçadas nos arredores do pequeno condado eram a sua grande diversão. O seu acompanhante, um homem de estatura baixa, mas com braços e pernas hercúleos, não podia faltar nestas aventuras no meio da mata. É que o velho pároco era caçador corajoso, mas não podia atravessar pontes feitas de palmeiras derrubadas para tal fim, à noite, nos caminhos íngremes, por ter uma perna menor que a outra. O Sancho Pança da hora, numa alusão ao Dom Quixote, de Saavedra, de volta da caçada, primeiro atravessava dois ou três caititus, ou veados, mortos e, depois, colocava o seu grande amigo nas costas e atravessava qualquer igarapé por cima de um tronco de árvore que, no mais das vezes, não media quarenta centímetros de diâmetro.

Um dia, de volta do périplo em busca de caças, num jipe a oitenta quilômetros por hora, às dez da noite, no meio da poeira do verão, num escuro de meter dedo no olho, mas contando com faróis potentes, de longe, o assistente caçador apontou pra frente e disse:

– Padre, vi uma agulha. Pare o jipe. – Ao que o religioso, ao volante, já olhando para o lado através da janela, respondeu:

– Deixa pra lá. Esquece. A agulha está rombuda. Não presta mais para nada.

O velho pároco era um homem incansável. O trabalho de construtor ia de vento em popa. Quase todos eram colaboradores. A matriz, quase concluída, se tornara belíssima. À tardinha, todos os dias, ele se utilizava de um potente aparelho de som e fazia fluir a sua verve poética, quando colocava, no toca-discos amplificado em milhares de possibilidades, a arte em árias de músicos clássicos como Beethoven, Vivaldi, Shopin, Paganini, Bach, Strauss, Liszt, Ravel, Verdi, Mozart, Tchaikovsky, dentre outros. O velho padre em macacões vermelhos domingueiros era, antes de tudo, um meio termo entre educador e refinador de espíritos e talentos.

***

No raiar daquele século, muita gente estava de chegada à planície e todos ficavam maravilhados com a espessura das árvores, com o perigo dos animais peçonhentos e daqueles que podem comer um ser humano num jantar sem a presença dos filhotes. Faziam-se alarmados com os grossos pingos das chuvas densas de janeiro. Os rios lhes metiam medo ou lhes matavam afogados. O bicho homem tocaiava o outro, à bala, por queixas mínimas. Assassinatos eram frequentes no meio da mata. As distâncias eram contadas em horas de relógio grande. Na floresta, os vizinhos mais próximos ficavam a meio dia de viagem a pé. Todos tinham vindo em busca de melhores dias para si ou para os seus. Desde o início daquele tempo e o final do anterior, por aqui formigavam almas brandas, ou não tanto, vindas de não sei quantos lugares da Terra.

Aportaram pessoas de boa índole, espíritos leves. É fato. Entretanto, a maioria tinha por objetivo maior ganhar dinheiro e se tornar ricos, urgentemente, custasse o que custasse. Mas eram visíveis, a todos do Farol das Almas, alguns que faziam do seu projeto de vida a colaboração, a solidariedade e, talvez, colocar em prática a vontade perpétua de migrantes interessados apenas em procriar mestiços, como ainda hoje acontece por aqui.

Almas brandas são espíritos bondosos que saltaram logo aos olhos do menino calçado em arreatas de couro cru. Talvez ele não estivesse aqui, nem sonhasse em nascer, mas tomou parte de tudo. Viu minúcias. Mais tarde, foi alvo de mil e tantos favores de gente de nacionalidades diferentes. Com estes, ele conviveu e até lhes frequentou as casas construídas em estilos tão diversificados quanto os seus lugares de origem. Gostava dos sotaques árabes e de Portugal, assim como o italiano das freiras. Imitava-os até com uma certa desenvoltura. O português fotógrafo da farmácia ficava extasiado ao vê-lo tagarelando como os de além-mar. Quando em casa, em meio aos seus, falava um tanto arrastado em vogais bem abertas, da mesma maneira que era próprio aos homens e mulheres vindos do nordeste da terra de santa cruz, como era o caso dos tios e avós de ambas as partes.

Como era doce o lugar, até pelo fato de muitas pessoas serem tão amáveis. Ainda hoje, o menino e anjo experimenta esse adocicado das relações quando em visita ou em sobrevoo através da planície e do seu lugar de origem.

A pequena freguesia expunha-se enquanto terra de gente iluminada por faróis e lentes vindos do Líbano, Portugal, Itália, Síria e do nordeste desta suposta ilha de vera cruz. Convém lembrar, dentre alguns outros, o senhor Masdene, uma espécie de biólogo e farmacêutico, e o casal Yriasse – ele administrador e economista e ela formada em história da arte –  que haviam concluído estudos na Universidade de Beirute, Líbano, a instituição de ensino superior mais antiga do mundo. Também o pároco que projetou a matriz era engenheiro e deu aulas de Matemática por anos a fio. Ele estudara na Universidade de Bolonha, a segunda mais velha do planeta, antes de se tornar padre. Eles faziam parte do grupo de luminares e faroletes que compunham o grande farol da beira do rio.

O menino anotador das boas notícias, aqui chamado Zé das Arreatas, viu professoras que trajavam batinas pretas e delas só se viam os rostos. Tinham vindo da Itália e, pelo menos cinco delas, também haviam feito estudos superiores na Universidade de Bolonha, a segunda mais velha do mundo. Alguns padres, também italianos, davam aulas das mais diversificadas disciplinas possíveis, como as do grupo das exatas, inclusive, a música.

O senhor Nikolai Gogol deixou um recado deveras interessante segundo o qual a única coisa que vale a pena é fixar o olhar com mais atenção no presente, porque o futuro chegará sozinho, inesperadamente. É tolo quem pensa no futuro antes de pensar no presente. Era mesmo assim.

O Farol de Almas Brandas sempre foi lugar místico abençoado, inclusive, pelos deuses ditos pagãos. Uma aura dourada tinge o céu nas tardinhas de inverno no hemisfério sul.

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Cláudio Porfiro: Cláudio Motta-Porfiro é romancista, cronista, poeta e palestrante. Membro da Academia Acreana de Letras. Email: claudioxapuri@hotmail.com