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Das duas, uma era desparafusada

Igual é igual e semelhante é outra coisa. Como nós somos tão diferentes um do outro, apesar de nos autoproclamarmos análogos. De onde é que nós viemos todos, se é que viemos de algum canto e estamos indo não sabemos pra onde? O Criador fez assim e é assim que deve ser. O aqui denominado anjo perscrutador estava lá e foi assessor leva e traz na execução do Projeto Paraíso Terrestre.

O risco que corre o pau corre o machado. Ou rico dono de engenho, ou pobre arrastando o bagaço da cana. Morre o burro e o dono que o tange. Uns vieram ao mundo para tirar retrato em cima da cela do cavalo; já outros nasceram simplesmente para escorar a carga e a cangalha a ser ajustada nas costas do jumento. E não me venha com esses seus peitos moles querendo me dizer que é moça, porque eu não vou acreditar é com nojo. Era mais ou menos com esses dizeres e relaxos que o sertanejo pai do Zé das Arreatas se referia quando via que um ser humano é de um jeito e um dito semelhante é de outro.

Há pessoas que já nascem com o nariz fumegando ou, como dizem, saindo fogo pelas ventas, cuspindo balas ou brasa ou vociferando impropérios quase sem parar. Arrastam armas e comem qualquer um na peixeira por muito pouco mais ou nada. Puxam encrenca com Deus e o mundo, arranjam inimizades com dez entre dez vizinhos, arengam com a vila inteira. Os palavrões, de manhã cedo, já são proferidos por qualquer detalhe que lhes saia do controle, vão às vias de fato por qualquer mal-entendido, pegam em armas e matam o pai e a mãe de manhã cedinho antes do dia amanhecer.

Há outras gentes que são pacatas e leves desde a origem, falam pouco e, quando dizem alguma coisa, é da forma mais educada possível, brandamente, sem altear o tom da voz, sem ferir os tímpanos de quem quer que seja. É daquele tipo que anda devagar, talvez, por estar pegando intimidade com cada passo que dá por esta vida afora. Estas, antes de ensinar, buscam aprender, como se estivessem vindo parar aqui para estudar alguma coisa. A maioria delas já sabe por onde caminham, com quem se acompanham, como se divertem na maior pacificidade do mundo. Elas fazem os planos, se esforçam na tarefa da execução e buscam no Todo Poderoso ajuda para as soluções diárias. De tão brandas, as coisas vão dando certo na vida, com raríssimas exceções.

            Quando o menino e anjo aportou, ou pousou no seio da família, em meados do século passado, já foi percebendo que era mais ou menos o do meio entre os filhos. Quatro destes haviam nascido antes e três vieram depois. Não se sabe exatamente porque, ele foi logo se sentindo muito à vontade, como ocorreria nos próximos tantos anos de vida a serem vividos da melhor forma possível, sempre com algum esforço, mas nem tanto, que é para não cansar o espírito e muito menos a matéria.

Dentre os mais velhos, havia duas irmãs. Uma era exatamente aquela alma leve e sempre de bem com a vida, na maior paz. A outra era levada da breca e um pouco doida.

A primeira se fez professora meiga, bondosa, e alfabetizadora competente. Exerceu o seu papel com muito carinho e esmero, e muitos foram os frutos humanos do seu trabalho nas escolas. Realmente, ela se tornou brilhante.

Um dia, essa irmã calmíssima, enquanto estudante das primeiras letras, no grupo escolar, percebeu que só a outra era conhecida e comentada nas rodas de meninos e meninas. Esta era uma espécie de celebridade irrequieta do Farol das Almas Brandas, nos anos cinquenta e sessenta do século anterior, enquanto a outra ficava encolhida a um canto e mal era percebida. Então, havia uma brincadeira de pular corda; aquela em que duas crianças ficam nas duas pontas da corda balançando-a, enquanto uma ou umas outras pulam no compasso do movimento.

A maria calma foi balançar a corda numa ponta e, para chamar a atenção, pelo menos uma vez na vida, vendo que uma outra menina passava próximo com uma cuia de tacacá, forçou a corda de forma a que conseguisse derrubar a guloseima da transeunte.

Tudo foi contado nos detalhes, mas a diretora só acreditou na ocorrência porque a própria confirmou haver sido ela mesma a autora do delito, de propósito, por querer. Mas não houve repercussão alguma. Em casa, nem a avó ranzinza acreditou e ela permaneceu naquele ostracismo infantil que aconselha a ficar quieto, em paz consigo mesmo, porque esta é a melhor forma de viver e viver bem melhor que os malucos e despranaviados.

Já a oura era tida e havida como a maria demais. Ela era desenrolada e arranjava confusão todo santo dia que Deus dava. A história dela era meter o tapa nas fuças da ou do oponente, agarrar-lhe os cabelos, derrubar no chão e partir a cara ao meio. Ela era do tipo feroz com todas as letras.

Numa dessas noites calorentas de Domingo depois da Missa, o homem careca, dono da comunicação, descobriu-a enquanto a melhor cantora das adjacências. A rádio chegava às casas, mas ficara mais famosa porque a sua programação noturna era transmitida por dois alto falantes potentes instalados na principal praça da cidade. Havia as melodias para você, as mensagens, uma espécie de coluna social e a apresentação dos valores artísticos da terra. Foi a partir daí que veio a consagração e a maria valentona conseguia arrancar aplausos da praça inteira com uma cantiga muito em voga:

                                   Devolvi o cordão e a medalha de ouro

                                   E tudo que ela me apresentou

                                   Devolvi suas cartas amorosas

                                   E as juras mentirosas

                                   Com que ela me enganou

                                   Devolvi a aliança e também seu retrato

                                   Pra não ver o seu sorriso

                                   No silêncio do meu quarto. (…)

            Em todo e qualquer rincão desta nação – que ainda não é país – as campanhas eleitorais se desenvolvem com muito estardalhaço e rixas de todo jeito. (Na cidade vizinha, num comício, foram mortos dois homens que discordavam não sei do quê.)

A maria braba fazia as suas tarefas domésticas, a mando da avó, sempre com muito zelo e carinho. Tudo dela era muito limpo-limpíssimo. Mas, do jirau de uma casa de fundos, naquele dia de manhãzinha, partia a voz sem graça de uma outra moça que cantava alguma coisa contra o Getúlio Vargas, que não era do seu agrado. Pronto.  Estavam formados o salseiro e o sururu. Ela percorreu os cinquenta metros dos quintais que separavam uma casa da outra e, sem contar conversa, esculhambou geral. Chamou a moça de puta ratuína e lambaia, e disse que ela se calasse, parasse de cantar mesmo, senão o pau iria comer e a cobra iria fumar. A moça teve tanto medo que nunca mais cantou os refrãos ofensivos ao pai do povo.

Ela era assim desembestada, destrambelhada, mas cuidava muitíssimo bem dos irmãos mais novos.

O nosso pretinho, da turma dos mais novos, era afilado, tinha sorriso fácil em dentes alvos e se passava como bonito. De uma certa feita, à tardinha, ela foi passear na praça com ele ao colo, como quase todos os dias, mas sem roupa. Segundo ela, era para não pegar quebranto. As amigas a encontravam e iam fazer gracinhas para a criança de uns dois anos e ela fazia logo a advertência de praxe:

– Isso. Faças as suas gracinhas, porque ele é bonito mesmo. Mas beije na bundinha dele que é pra ele não pegar mal olhado. Tô dizendo. Essas doidas. É cada uma!

Um dia, ela teve que partir para viver numa comunidade à beira do mar da famosíssima belacap, o Morro da Babilônia. Depois de morar no Turano e no Pau da Bandeira, ela, enfim, se estabeleceu como houvera sonhado. Montou até uma vendinha. Dos seis filhos, os mais velhos começaram a trabalhar na indústria e no comércio da zona sul. Um foi para a marinha, outro foi pro tiro de guerra. Ainda hoje são felizes na medida do possível.

Mas a brabeza falou mais alto. Num desses dias, o pretinho penúltimo, assim mais ou menos da pele cor de jambo, igual à do menino e anjo, como fazia todas as manhãs, foi soltar pipa na rua de morro acima, claro. Num descuido e um outro bacana cortou a linha e o artefato voador foi cair num quintal indevido. Ele, desavisadamente, pulou o muro em busca do seu brinquedo. Um homem branco, desses traumatizados por morar em meio aos negros da favela, vendo aquilo, tascou inadvertidamente:

– Ei, negrinho safado, passa já do meu quintal.

A gente é preta, mas não gosta que assim nos chamem, nem gosta de ser chamado de moreno ou mulato ou marrom. A maria sentiu o sangue ferver nas goelas, pegou de um facão, também chamado terçado, e foi pro meio da rua, na frente da casa do enjoado, feito um siri dentro de uma lata. Ela riscava o asfalto de uma forma tal que saíam faíscas, e dizia:

– Desce aqui, cabra filho de uma égua. Eu vou te arrancar os ovos pelos gurgumim, sujeito filho da puta. Vem aqui se você for macho, cabra safado. Eu vou te mostrar como se deve tratar o filho de uma mulher do norte. Você pode não descer, mas eu vou te pastorar e um dia te pego.

Resultado… A família se mudou pra Morro Agudo e deles nunca mais se ouviu falar. Foram viver, de novo, entre gente de cor, como não poderia deixar de ser. Este é o Rio.

 

 

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Cláudio Porfiro: Cláudio Motta-Porfiro é romancista, cronista, poeta e palestrante. Membro da Academia Acreana de Letras. Email: claudioxapuri@hotmail.com