Para o Sílvio Martinello.
Nasci artista, sou formado em Letras e na bebida busco esquecer. Não trabalho em nenhuma editora, mas vivo revisando e revisitando textos que não me dizem respeito, ou não me pediram para revisar ou revisitar.
Pela manhã, ligo aquela máquina infernal, arlequinal, dantesca, que me leva direto ao sítio da minha escola superior e vejo alguns erros de português, que todo o planeta vê, ali onde eles bem poderiam não estar. Ah, infelizes vírgulas! Asteroides cujas luzes não brilham porque a sua praça é o seu lugar escuro. Aquilo ali é um céu de muitas estrelas foscas e poucas, pouquíssimas brilhantes.
– Oh, baby, eu não pedi pra nascer! – É o que me dizem a concordância, a regência e a colocação pronominal sórdidas, sorrateiras, ensimesmadas.
E a moça bela da janela é uma jovem prostituta que em outro tempo de uma outra era se acompanhou muito bem, comigo. Ó, última flor do Lácio! Onde estás que não respondes? Ai de ti!
Ora, já não fazem poetas ou poesia como antigamente… Os versejadores heroicos, paranoicos morreram de overdose ou estão silenciados em presídios e masmorras estatais francisco d’oliveira conde. Já nem mais sabem o que vem a ser poesia. Ninguém entende, mas o sinal também está fechado para nós que não somos mais tão jovens, numa alusão ao Belchior.
Na academia de ginástica, todos entendem o que eu digo porque me comunico, livremente, através da já pouca protuberância dos músculos um tanto amadurecidos, um pouco tenros. Na minha casa de excelência e de formação de consciências coerentes, poucos compreendem o que escrevo porque ainda não começaram a fazer como eu em criança que, por não ter tarefa alguma, à noite, era obrigado pelo pai a estudar o dicionário. Coisa de louco!
Entre um cigarro e outro, a prima minha chefe, a magnânima contou a mim vil anedota da vida real. Disse-me que um doutor (desses que não são) taxou um nobre parceiro seu de ventrículo porque este falava pela boca do governador Binho, um sujeito pra lá bacana. Ora bolas! Ventrículos são aquelas quatro partes em que se dividem os corações apaixonados e também os sem amor. O termo a ser usado, certamente, seria ventríloquo, aquele cara metido a mágico que fala em lugar do boneco preto que lhe está às mãos apenas movendo as mandíbulas de madeira. O senhor é um pândego, oh nobilíssimo parlamentar!
Seria mais trágico se não fosse tão cômico, ou vice-versa. Uma pilhéria, um chiste, uma facécia, um gracejo, uma piada… Mas não riam comigo. Já ficou triste demais.
Mais uma vez, daquela conversa aprumada, mas escorada no balcão, chegamos a um consenso fatídico. Estamos formando professores de redação que nunca aprenderam ou jamais aprenderão a escrever sequer um texto sobre as miraculosas vidas das suas admiráveis mães.
Orai, irmãos! Penitenciai-vos! Como disseram os cristãos aos antigos romanos nada castos, onde ides com toda essa orgia. Se o cidadão nunca sentou um tijolo sobre o cimento ou se nunca deu um prego numa barra de sabão, como é que vai conseguir ensinar um aprendiz de quinze anos a erguer um prédio? Tá todo mundo variando, minha senhora!
É feito aquela moça de olhos verdes que sonhou um dia ir para a cama com o Belmondô, ou voar num hirondelle, ou num supersônico seu, novinho em folha, mas esqueceu de fazer um bom aeroporto. (Ora, minha doce ex beldade! Como é que você vai alçar vôo num aparelho tão pesado se o seu ponto de apoio é somente esse charco que é a vidinha hoje cheia de celulites e crianças maltrapilhas?) Uma boa base em bom concreto e ótimo asfalto, a partir de estudos na Ufac ou na Sorbone, já seria um excelente ponto de partida para a realização dos seus sonhos tão interessantes que hoje já não têm em mira mais aquele velhote sessentão porque ele ficou pobre e doente.
Então, eu tirei licença prêmio; isso, há uns sete anos. O diretor do circo, por sua vez, fez bem o seu papel mambembe competente e substituiu uma cobra por uma avestruz, ou um leão por um dinossauro daqueles do tipo ou da marca olivetti. A pedido da nova professora, fiquei uns quinze minutos na sala de aula, como que para aparar alguma aresta ou ponta de chifre inicial. A moça era pra lá de bela, bem trajada, elegante, unhas pintadas, beiços em carmim, cabelos feitos no salão da Lili, roupas esvoaçantes, um par de rabo colossal, boa por demais da conta… E eu aqui já vesgo, zarolho, porque se ninguém é de ferro, muito menos eu.
Mãos de princesa foram ao quadro – sinédoque – e começaram a fazer apontamentos relativos à aula a iniciar-se. Cerca de três linhas escritas depois, daquelas que vão de um lado ao outro do quadro, eis que uma das alunas, menina simples, educada, filha de um dos homens da segurança píublica, dedo em riste e com a voz em baixa tonalidade, fez comentário bem simples:
– Olhe, professora! Nós já estudamos umas coisas por aqui e algo me diz que ali há um erro de ortografia, mais adiante há um de pontuação e em seguida um de concordância… É pegadinha, é?
A moçoila que fazia as vezes de professora desatou a chorar, juntou os cacos de si própria e sumiu corredor afora… Nunca mais a vi.
Tende piedade! Eu fiquei condoído, compadecido. E quem não ficaria. A situação ficou mais triste porque deduzimos que ninguém houvera ensinado a professora a dar aulas. É isso: casa de ferreiro, espeto de pau, ou vice-versa.
Um dia, num outro bar da mesma praça, um outro bêbado me lançou desafio e tanto. Não fomos às vias de fato. Só havia tripas. Por pouco, muito pouco, não lhe dei uns safanões, mas disse-lhe que era um poeta pequeno e um cronista menor. Orgulhoso por nada, falei-lhe de um projeto esquizoide engavetado nas entranhas do cérebro. Haveria de escrever um romance, uma vez que tinha fôlego suficiente, que há muito produzia crônicas da vida comum e da morte de todo mundo, e que já tinha o primeiro elemento para tal empreitada, um projeto de narrativa com início, meio, fim e espinha dorsal. Nada o meu desafiante entendeu.
Imaginou certamente que eu me referira a um bom bocado, aquele tira-gosto que já não se acha mais nas piores biroscas lisboetas, ou de Luanda, ou cariocas. Ai de mim!
O louco desregrado, em alto e bom som, neurastênico, bradou aos quatro pulmões corroídos por canabis:
– Você é um metido a besta, seu cabra da peste! Você não tem condições de escrever um romance. É preciso muita pesquisa. Cresça e apareça. Vá se catar, seu porra!
Triste pra casa abatido e desencantado da vida, voltei para o aconchego da família e para a reposição das energias com o corpo agora em descanso, já que a alma vadia ainda ficara a vagar de bar em bar, atrás de umas ou outras de tênis ou sobre saltos altos e olhos de gueixa. Dormi sono solto, dos anjos pecaminosos.
Manhã de sábado, então. Acordei com o tal gostinho de cabo de guarda-chuva na boca, mas sem ressaca, pois não a tolero nem a alimento. Comi à tripa forra e pensei no bebum que hoje se diz meu amigo.
Talvez nove, talvez dez da manhã. Talvez mais. Entrei na minha sala de estudos. Liguei o micro moderno cheirando a novo e a suco de maracujá, porque os meus gêmeos brincam ali com joguinhos do diskovery kids. Lembrei de um super amigo e meu grande incentivador, o Malacape. Por último, em meio ao entrevero no boteco, ele houvera dito que acreditava na minha capacidade em levar a cabo o projeto do romance. Certo é que, já sentado à cadeira confortável cheirando a queijo rançoso do sanduíche juvenil da noite passada, anotei na tela do computador:
O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE
E mais embaixo, o meu nome também bastante pomposo. José Cláudio Mota Porfiro. E lá no pé da página: [email protected]. Sim, pois o nome glorioso de Xapuri deve estar no meio de tudo o que de mais importante ocorrer na minha vida porque, segundo o eterno primeiro-menino de Brasiléia, esta é a parte mais interessante do meu estreito currículo pequeno burguês.
Assegurou-me o dono do jornal, meu editor conveniente e bacana, que, tal qual fizeram com o Machado de Assis, os capítulos da minha obra-prima da prima da empregada da minha irmã seriam publicados, sempre aos domingos, como os antigos folhetins do final do século dezenove. Fiquei inchado, e não apenas os pés. Não cabia em mim de tanto orgulho, mas me encaixava numa betoneira que não me trituraria nem me misturaria a nenhum elemento mais concreto, uma vez que sou de ferro, apesar dos índices glicêmicos às vezes baixos.
Prometi-nos, categoricamente, a mim, a mim mesmo e a uma meia dúzia de amigos que não me leem: escreveria quarenta capítulos da história de um nordestino que não chegou pobre ao Acre; muito pelo contrário, como um César raquítico e não gay, para cá veio, viu e venceu.
Hoje, estou no vigésimo primeiro de uma diatribe prazerosa, suportável e pouco enfadonha, apesar da faina diária de um burocrata do ensino superior que não nutre ninguém de esperanças fúteis, mas dá aulas de português à noite, num colégio público, para moços e moças atônitos e marchando trôpegos diante da realidade nacional mal educada. Pior é que o editor também bebe, como eu, em outro bar, mas, mesmo sóbrio, apimenta o meu ego e as minhas vontades e diz que o texto está supimpa. Tá bom!
Ah, sim. Não vou aqui posar de vítima das circunstâncias das letras menoscabadas, mas que me desculpem o Luiz Fernando Veríssimo, o Cazuza, o Castro Alves, o Belchior, o Lulu Santos, o velho Machado e o Paulo Vanzolini, dentre outros possíveis, pelas referências feitas com tão pouca habilidade. Tudo é uma só síntese porque vivi a era da cibernética e a da informática. Componho ou elaboro textos em notebooks. Adentro agora o mundo nano, o da nanotecnologia.
Fi-lo porque qui-lo, senhor Jânio em quatro Quadros! Todos eles, juntos ou desunidos, são muito mais interessantes, mais simpáticos, menos apáticos e mais zombeteiros que eu, se é que alguém me entende.