No mês de aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, 10 de dezembro, o Brasil ganha uma nova versão do Programa Na-cional (PNDH), que atualiza e amplia as versões anteriores. O primeiro PNHD, de 1996, colocou mais ênfase nos direitos civis e políticos. O segundo, de 2002, incorporou direitos econômicos, sociais e culturais.
Como passo adiante nessa jornada histórica de fortalecimento da democracia entre nós, um destaque do PNDH-3, lançado agora por decreto do presidente Lula, é que 30 ministérios assinam a exposição de motivos e o compromisso de trabalhar por seu cumprimento.
Dessa forma, fica reforçada a visão de que a promoção dos Direitos Humanos é uma responsabilidade que interliga todas as áreas de governo. Mais que isso, constitui uma verdadeira política de Estado, na medida em que as ações previstas não se limitam a um mandato presidencial e se projetam em recomendações ao Legislativo, ao Judiciário e ao Ministério Público, além de planejar intervenções conjuntas entre União, estados e municípios.
Nessa atualização do PNDH anterior, coube um papel decisivo, como sempre, aos movimentos sociais, ONGs e organismos vinculados à defesa dos Direitos Humanos. É de suas demandas, pressões e cobranças que o Estado redemocratizado vem colhendo, crescentemente, formulações para compor as políticas de governo. Políticas que, na área dos Direitos Humanos, buscam superar o cenário ainda intolerável de violações no cotidiano nacional: crianças ainda são alvo de violências, abusos e exploração sexual; pessoas com deficiência são vítimas de exclusão; o racismo está longe de ser abolido; as mulheres continuam submetidas à dominação machista; torturas ainda são praticadas; sobrevivem modalidades de trabalho escravo; a divers
idade sexual ainda é estigmatizada; movimentos sociais são criminalizados em alguns estados; enfim, um rosário espinhoso de heranças de nosso passado escra-vista e dos períodos ditatoriais.
A afirmação dos Direitos Humanos requer uma intera-ção democrática entre poder público e sociedade civil, onde são inevitáveis as tensões, divergências e disputas. Mas o esforço perseverante valeu a pena. O texto do PNDH-3 foi construído ao longo de dois anos. Em janeiro de 2008, o presidente Lula convocou um mutirão nacional de debates para atualizar o PNDH anterior, publicando em abril o decreto convocatório da 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, conduzida de modo tripartite pelo Fórum das Entidades Nacionais de Direitos Humanos, pela Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.
Com 1200 delegados, esse encontro ocorreu em Brasília, entre 15 e 18 de dezembro daquele ano, sendo precedido por conferências em todos os estados, que reuniram mais de 14 mil pessoas, em 137 eventos municipais ou regionais. As resoluções da Conferência Nacional compuseram o esqueleto básico do Programa, ao qual se agregaram propostas centrais de 50 conferências nacionais temáticas, realizadas desde 2003 por convocação federal, sobre igualdade racial, direitos da mulher, segurança alimentar, crianças e adolescentes, juventude, segurança pública etc.
Foram necessários meses de costura política entre representações da sociedade civil e membros dos poderes públicos, seguidos por outros meses de diálogo – algumas vezes tenso – entre diferentes áreas de governo. O produto final é um documento consistente. Sua concre-tização, ao longo dos próximos anos, é o desafio que se abre a todos, não importando quem vença as disputas eleitorais de 2010.
Estruturado em seis eixos orientadores, o PNDH-3 constrói nada menos que 521 ações programáticas sobre 1. Interação Democrática entre Estado e Sociedade; 2. Desenvolvimento; 3. Universalizar Direitos em um Contexto de Desigualdades; 4. Segurança Pública; 5. Educação em Direitos Humanos; 6. Direito à Memória e à Verdade. São arrolados os Ministérios responsáveis por tais ações e apresentadas recomendações aos demais poderes republicanos, bem como aos entes federados estaduais e municipais.
Sendo impossível selecionar aspectos mais importantes do novo PNDH, cabe registrar três pontos muito promissores desse roteiro atualizado para fortalecimento da vida democrática e da cultura de paz, neste Brasil que se prepara para sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olim-píadas de 2016.
Um deles é tratar a questão da segurança pública como um direito humano de primeira grandeza, rompendo bloqueios do período ditatorial, em que a polícia sempre estava associada à repressão política e ao medo. O PNDH-3 desdobra todos os fundamentos do Pronasci (Programa Nacio-nal de Segurança Pública com Cidadania), concebendo mudanças que levam as novas corporações policiais a se verem como defensoras de Direitos Humanos, com a obrigação de também serem vistas assim pela comunidade.
Um segundo realce está na prioridade atribuída à chamada Educação em Direitos Humanos, visto que só viveremos numa sociedade onde prevaleça o respeito ao outro e a valorização da igualdade na diversidade, se desde muito cedo, desde a pré-escola, cada cidadão se formar nesse espírito de fraternidade e solidariedade, sendo a vida escolar necessariamente complementada com a educação (ou deseducação) que também emana dos meios de comunicação de massa e nos espaços de convivência social ou familiar como igrejas, clubes, associações, sindicatos.
Por fim, o governo do presidente Lula estabelece no PNDH-3 seu compromisso formal de enviar ao Poder Legislativo, até abril, um projeto de lei instituindo, finalmente, uma Comissão Nacional da Verdade, conforme já aconteceu na maioria dos países vizinhos que também viveram violentas experiências de ditaduras repressoras.
Despida de sentimentos revanchis-tas, essa Comissão da Verdade cuidará de apurar todas as violações de Direitos Humanos ocorridas no âmbito da repressão política, sobretudo durante o regime de 1964, para que seja feito o processamento histórico, político, ético e – se assim decidir o Poder Judiciário – também criminal, de todos os episódios de tortura, assassinatos, desaparecimentos de opositores políticos e ocultação de cadáveres registrados naquele triste período.
Não para sangrar feridas do passado, mas para lavá-las adequadamente e garantir a necessária cicatrização em espírito de reconciliação, somente possível com o resgate da verdade e investigação pública de todos os fatos. Não para retornar à violência odiosa daquele período, mas para preveni-la. Para que ninguém esqueça. Para que nunca mais aconteça.
* Paulo Vannuchi é ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.