Em um período histórico de plena evolução, onde a internet chega a uma grande camada social e a luz é quase para todos, imaginar pessoas que nunca foram ao cinema é quase improvável. Porém elas existem e uma delas atende pelo nome de Maria Cardoso da Silva, 73, moradora do Seringal São João, 4h30 distante de lancha (voadeira) de Sena Madureira.
Situada na comunidade Saudade, a energia ainda não chegou a colocação, e chegar a Sena, com as canoas que passam ao longo do Rio Purus é uma tarefa que faz apenas uma vez por mês, mesmo assim por um dia apenas, o suficiente para receber a aposentadoria e retornar ao lar. “Não tenho muito a ver com a cidade, meu lugar é aqui e lá tenho medo”, afirma a ex-seringueira.
Poder assistir a 7ª arte só foi possível graças ao projeto social Cinema na Floresta, na sua 3ª edição, que leva para o povo ribeirinho nas proximidades de Sena Madureira – outras nem tanto – a oportunidade de ver de perto alguns filmes brasileiro na tela.
O filme escolhido para a comunidade Saudade foi “2 Filhos de Francisco”, contando a trajetória de Zezé de Camargo e Luciano. Os produtores e familiares estavam com olhares fixados, porém dona Maria Cardoso estava concentrada, não deixando quebrar o clima em nenhum momento, mesmo quando o flash da máquina fotográfica insistia em perturbá-la. Parecia, a exemplo dos demais, hipnotizada pela tela.
Antes de começar a mostra do filme, dona Maria sintetizou o que significava aquele momento para as pessoas da comunidade. “É uma coisa que nunca vimos, todos ficaram admirados. Minha nora até me disse: “hoje não vou fazer o jantar, eu quero é assistir, pois nunca vi”. E respondi: “pois então deixa e vamos embora que eu também não quero perder’”, comentou soltando um sorriso.
Sem muita opção de lazer, devido a dificuldade de chegar aos centros, qualquer atração é uma grande novidade para os ribeirinhos. Motivo que, além de fixadas no filme, durante as passagens de dificuldade dos personagens, talvez solidarizando-se com a situação, vários expectadores, mulheres, crianças e até mesmo os homens, acabavam traídos pela emoção, deixando rolar lágrimas. Claro que os homens tratavam de enxugar rapidamente, pois, segundo um deles, aquilo não tinha lugar na zona rural.
Maria Cardoso acabou o filme agarrada a uma das netas e, apesar de passar das 22h, horário que normalmente já estaria dormindo, ficou sentada por alguns segundos, olhando vagarosamente para um lado e para outro, como se aguardando um novo filme. Passando ao lado da equipe de reportagem de A GAZETA, comentava com a neta: “é lindo mesmo, né?”, afirmou, numa interrogativa a sua companheira de sessão de cinema.
A 7ª arte voltava a emocionar, como faz nos grandes centros, porém na comunidade Saudade, onde a cidade mais próxima fica a 9h ou mais rio acima, a emoção é ainda maior. Filhos dormiam nos colos, enquanto os pais pareciam embalar no ritmo de cada nova música, tudo isso misturado a lágrimas escondidas, sorriso, sentimento de angústia ou alegria, que somente o cinema é capaz.
Ex-seringueira e quebradora de castanha, Maria Cardoso da Silva, 73 anos morando no Seringal São João, afirma que se considera o centro da sua família, formada por 12 filhos (apenas 10 vivos), 37 netos e 30 bisnetos, na grande maioria residindo próximos de suas “asas”, como afirmou. “Quando vejo que estão errados eu dou conselhos e eles me obedecem”, afirma.
Escolas, igrejas e até casa de farinha
Para quem pensa que apenas locais fechados, como escolas, residências, igrejas, associações são propícios para a execução do projeto Cinema na Floresta, está enganado. Até mesmo casas de farinhas podem ser adequadas para acomodar os ribeirinhos para apreciarem a 7ª arte.
Quando o filme “2 Filhos de Francisco” passava na tela, os moradores locais improvisavam seus assentos em grades, cochos, cepo de pau transformados em tamboretes ou mesmo encostados na, agora fria, fornalha, serviam para assistir há quase 2h de filmes. Enquanto as pessoas da comunidade iam se acomodando, pessoas do projeto colocavam DVDs de grupos sertanejos (Eduardo Costa, João Henrique e Pedro, além de outros na sacola) para entreter antes de iniciar ao filme.
José Souza, do Sindicato, explicava que o principal objetivo era levar a cultura brasileira, por isso mesmo os filmes sempre eram brasileiros. “Desde as primeiras comunidades visitadas, como a Wilson Lopes, no Caeté, até esta última, na Praia dos Paus, no Purus, sempre trouxemos filmes produzidos no Brasil (Guerra de Canudos, 2 Filhos de Francisco e outros), sendo que sempre quem escolhe o filme é a própria comunidade”, explica.
Lazer – Não é apenas os integrantes do projeto quem levam entretenimento, muitas vezes o próprio ribeirinho mostra seu valor. Durante a passagem pela comunidade São José, uma peça teatral do grupo “Novo Fenix”, sob a coordenação do professor Eronildo, com as crianças da escola local, chegaram a emocionar aos presentes, “dignas de amostras no teatro Plácido de Castro”, garante o sindicalista.
Ao cair da noite, após a apresentação do filme, na comunidade da Saudade, os ribeirinhos providenciaram um “arrasta-pé” ou uma noite de forró com direito a muita dança. “Aqui não existe isso de querer brigar. Quando alguém fica muito encrenqueiro, providenciamos para ir para casa”, garante Euclides Cunha, o coordenador da comunidade.
Cinema na floresta
O projeto social Cinema na Floresta foi criado com a intenção de levar uma opção de lazer e também conhecimento para os ribeirinhos próximos à Sena Madureira, que mar-geiam o Rio Iaco e seus afluentes (Purus, Caeté e Macauã). Esporte, cultura e palestras também são associadas nas viagens da equipe.
A realidade amazônica leva os “pioneiros” na região deste tipo de projeto para viagens de dias, levando o cinema, além de opções de entretenimento. “Nos locais onde aportamos o barco, somos sempre bem recebidos, pois levamos além do cinema, futebol, corrida, realizamos gincanas, eventos de cultura, quando possível apresentação de capoeira, isso sem mencionar as palestras de funcionários do Ministério Público, do INSS e outros órgãos para explicar sobre o meio ambiente, relativo ao produtor rural”, explica José Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Sena Madureira.
Nos três anos de existência do Cinema na Floresta, estima-se em torno de 60 comunidades visitadas, com um público de aproximadamente 5.000 pessoas envolvidas. José de Souza lembra que não apenas os ribeirinhos são beneficiados com o projeto, mas também escolas, igrejas que solicitam ao Sindicato a projeção em eventos. “É uma forma de lazer que oferecemos à população de Sena e próxima”, ressalta.
O Sindicato conseguiu o auxílio do Governo do Estado, através da Fundação Elias Mansour, além de parceiros, entre eles a prefeitura de Sena Madureira e secretarias do Estado. “Eles tem nos ajudado no projetos, sabendo da dificuldade que é levar a cultura e lazer na zona rural”, avalia o dirigente.
Logística do projeto
Em 2009, o projeto Cinema na Floresta teve aprovado R$ 12 mil para sua realização. O barco do Sindicato, de 17 metros e com capacidade para seis toneladas, transporta uma equipe entre 10 a 12 pessoas que navegam pelos rios afluentes a Sena Madureira.
Dependendo dos locais, o Sindicato utiliza a Toyota ou a voadeira para auxiliar na execução do projeto. Ainda são utilizados: grupo gerador (iluminação e projeção), data show, DVD, caixa de som, microfone, tela e um estabilizador.
Rio, o único meio de transporte
Comunidades isoladas do restante do mundo, tendo como principal meio de transporte e ligação os rios, sejam o Iaco, Purus, Macauã ou Caeté. Assim é a vida dos milhares de ribeirinhos existentes no Acre, em especial próximas a Sena Madureira. Pensar que estas pes-soas não são felizes da forma que vivem é ledo engano, porém a falta de opção de lazer também é uma realidade.
Para o barco do Cinema na Floresta chegar em certas localidades é preciso um dia de viagem, muitas vezes saindo de madrugada para, no mais tardar, nos últimos raios do sol ancorar em alguma comunidade. Para chegar na comunidade São José foram necessários quase 8h de viagem, isso descendo o rio, pois subindo isso quase que dobra.
O trajeto até a mesma comunidade de voadeira, descendo o rio, foi de 2h30, porém quando o trajeto foi o inverso, subindo o Rio Purus, o tempo foi de 4h30. “A gente que mora aqui, demora quase um dia de viagem para chegar a Sena”, lamenta Ana Maria, 34, alegando ser o motivo que quase nunca vai para a cidade.
Futebol como integração
Que melhor meio de integração do que o futebol, a paixão nacional, para integrar? Pois nas comunidades ribeirinhas não é diferente. A comunidade da Saudade, durante o dia que antecedeu o Cinema na Floresta – sempre realizado à noite – realizou um torneio batizado de Purus, com a participação de seis equipes das localizações próximas.
Calçados de chuteira, com apenas uma ou até mesmo descalços, os jogadores iam demonstrando suas habilidades no campo que momentos depois serviria como pasto para o gado. Com algumas irregularidades, muitas vezes a dificuldade de dominar a bola era o principal adversário, porém não era motivo de reclamação de nenhum jogador.
No final a equipe do Remanso acabou vencendo por 2 a 0 o São Miguel, gols de Edvan e Toinho. “Difícil vir um torneio para cá. Quando vem a gente só agradece por isso”, disse Edvan Lima, atacante do Remanso. O coordenador da Juventude de Sena, João Pinheiro, acrescenta: “só quem tem a ganhar são as pessoas que moram tão distante dos centros, e é exatamente esse o nosso objetivo, de lazer e entretenimento”.