É manhã da última quinta-feira, 14. Um pequeno grupo caminha em direção aos fundos do Cemitério Jardim da Saudade, em Rio Branco. O terreno está encharcado com a água da chuva da noite anterior. Apesar da grama, impossível não afundar os pés e entrar em contato com a terra. O cenário é desolador. Gemidos, intercalados com frases de despedida, ecoam por todos os lados.
São os familiares de Hermínio da Silva Dutra – vítima de número 59 do DDT no Acre – expondo para quem quiser ver e ouvir o sofrimento de uma família destroçada pelo pesticida. Infelizmente, aqueles que teimam em ignorar esta triste realidade não estão presentes ao sepultamento.
A viúva, Maria do Carmo Dutra, 50 anos, segue em luto atormentada pela dúvida se a exemplo do marido também tem o veneno presente no organismo. Sem dizer uma palavra, ela caminha com dificuldade, com destino à residência da família, localizada a poucos metros do cemitério, no bairro Tancredo Neves.
No cemitério, família chora a perda de Hermínio Dutra, 59ª vítima do DDT; o filho (C) tem retardo mental
Maria e Dutra ficaram unidos em matrimônio por 40 anos. Durante o período em que ele trabalhou como guarda da extinta Sucam – atual Fundação Nacional de Saúde – enfrentando a malária, o veneno utilizado no combate ao mosquito transmissor era trazido para dentro de casa através da farda usada em serviço, e entrava em contato com o corpo da mulher quando era lavada por ela.
Coincidência ou não, as pernas de Maria do Carmo, partes do corpo mais afetadas pela água contaminada pelo DDT, estão seriamente comprometidas. Ela tem dores constantes e apresenta dormência em algumas regiões. Um dos pés está coberto por manchas pretas. Ela não tem certeza, mas acredita que as complicações têm ligação com o DDT.
O Dicloro-Difenil-Triclo-roetano (DDT) começou a ser utilizado na Segunda Guerra Mundial para eliminar insetos e combater as doenças emitidas por eles como a malária. Demora de 4 a 30 anos para se degradar. Os EUA foram os primeiros a proibir seu uso, por volta dos anos 70, em virtude de seu efeito acumulativo no organismo. Alguns estudos sugeriram que é cancerígeno, provoca partos prematuros, causa danos neurológicos, respiratórios e cardiovasculares.
Família de Hermínio Dutra estava inconsolável e revoltada durante o enterro?
No Brasil, deixou de ser fabricado na década de 80. A Justiça Federal proferiu, em janeiro de 1997, sentença determinando que o Ministério da Saúde instituísse programa científico federal voltado à substituição do produto nas campanhas de saúde pública.
A Secretaria de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde baixou a Portaria nº 11, de 8 de janeiro de 1998, que proí-be o uso do DDT nos programas de controle de doenças transmitidas por insetos, inclusive da malária.
Projeto de autoria do senador Tião Viana (PT/AC) tramita no Congresso Nacional, desde 2002, visando oficializar através de lei a proibição da fabricação, comercialização e exportação do produto. Porém, até hoje não foi instituído um programa de acompanhamentos dos contaminados e de seus familiares.
Gismarina da Silva já não sente as pernas
Na solidão do lar, Gismarina vive dias de medo e incertezas
Maria Gismarina da Silva Araújo, 58 anos, está viúva há um ano. Ela lembra que o marido, João Alves de Araújo, com quem ficou casada 36 anos, sofreu muito antes de morrer. A crise fatal aconteceu no quarto do casal. Imagem que ela não consegue apagar da lembrança. “Ele cuidava de mim, agora não sei o que será da minha vida sem ele”, lamenta.
A situação de Gismarina é uma das mais graves entre as viúvas do DDT. Mãe de cinco filhos, vive na companhia do caçula de oito anos numa casa modesta no bairro das Placas. Ela não sente as pernas, o que lhe impede de realizar tarefas simples, como varrer a casa, por exemplo. Também não pode andar sozinha e confidencia que a última vez que saiu de casa foi para ir ao velório do marido.
Uma rede armada na varanda é seu porto seguro. É lá onde ela recebe as visitas, como fez com esta GAZETA, na semana passada. Gismarina também apresenta dificuldade para enxergar e sérios problemas de garganta, além de sofrer de dores de cabeça constante. “Os sintomas que eu apresento estão cada vez mais parecidos com os do meu marido. Gostaria que fizessem alguma coisa por nós”, apela, enquanto segura a foto do falecido marido.
O caso dela ainda tem um agravante, ela só toma remédio quando tem crise e vai parar no hospital. Na última vez, ficou dez dias em coma. Segundo ela, a pensão deixada pelo marido é insuficiente para tantos gastos com a saúde. Também revela que nunca recebeu qualquer visita da assistência social da Funasa para saber se ela precisava de algo.
Elisângela dos Santos, 30 anos, mulher do ex-guarda da Sucam José Aguiar
De esposa a enfermeira particular do marido
Elisângela dos Santos, 35 anos, é a segunda mulher de José Aguiar. Da união de sete anos, nasceu uma menina que já está com dois anos e dois meses de vida. Diante a estabilidade da saúde de Aguiar, ela acabou se transformando em enfermeira particular do marido.
“Ele toma vários tipos de remédios. Apenas um deles custa mais de R$ 300,00. Faço questão de acompanhar tudo de perto, como garantia de que ele vai tomar na hora certa e poderá viver para ver a nossa filha crescer”, fala entristecida.
Elisângela é uma mulher saudável, seu contato com o DDT foi o que a maioria dos moradores da Amazônia teve quando sentia o cheiro do produto colocado nas residên-cias através da borrifação. Sua dor está na alma. Ela sofre em ver o marido cada dia mais nervoso, abatido a cada notícia de um companheiro que partiu.
“São pessoas que estão falecendo com os mesmos sintomas e no mesmo local. Quer evidência melhor que essa. Eles ainda tem coragem de dizer que nossos maridos têm de provar que estão doentes”, protesta.
O maior desejo de Elisângela é que o marido receba o tratamento adequado. “Gostaria que houvesse cuidado especial para ele e para os outros. Até agora é tudo por conta própria, o dinheiro deles é insuficiente para tantos remédios”, diz.
Utemara Cristina, mulher do ex-guarda Antônio Araújo
Mulheres pensam em criar associação para fortalecer a luta
Mulheres e viúvas dos ex-guardas da Sucam já pensam em criar uma associação para fortalecer a luta contra os efeitos do DDT. A idéia está sendo defendida pela contabilista e bacharel em Direito, Utemara Cristina Silva e Paiva. Ela é mulher do ex-guarda Antônio Araújo de Paiva, com quem tem dois filhos.
Utemara aparentemente não tem qualquer problema de saúde. Só aparência. Não é por acaso que ela anda com uma sacola de remédios. Como as outras mulheres, tem dores constantes nas pernas, nas costas, dormência e apresenta manchas pretas pelo corpo.
Médicos já alertaram que o ganho de peso pode está associado a causas desconhecidas, haja vista que nenhum tratamento funciona com ela.
Alia-se a tudo isso o fato de assistir diariamente o avanço do envenenamento no marido. “Ele não dorme, está em pânico, pensa que pode morrer a qualquer momento. Eu também temo que isso aconteça”, declara. Ela acredita que com a criação da associação das mulheres e viúvas do DDT o movimento ganhará mais força.
Aos 30 anos, mulher de ex-guarda da Sucam luta contra o câncer
Maria Rocilene Oliveira Rufino, 30 anos, deixou o marido doente em Feijó, na companhia do filho de 12 anos, e veio para a Capital, há dois meses, para tratar de um câncer no útero. “Meu marido também é ex-guarda da Sucam e está doente, tenho medo de também ter sido contaminada, já que existem estudos que comprovam que o DDT é cancerígeno”, observa.
A dúvida acerca ou não da contaminação a levou até o Ministério Público Federal (MPF), que orientou que ela buscasse ajuda médica, para com base nos laudos fornecidos pudesse ingressar com uma ação de reparação.
“Se para os nossos maridos já está sendo difícil provar que estão doentes em virtude da contaminação, imagine para nós. Eu queria que a Funasa fosse obrigada a fazer o exame em toda a família”, reivindica.
Ela afirmava que na época em que lavava as fardas do marido, ela sentia um forte formigamento nas mãos e no rosto. “Queimava muito, eu tinha que colocar água, gelo, chegava a ferir”, relata.
Filhos também podem ter sido contaminados
Alexandre tem 25 anos. Quando ele nasceu em 1985, o pai ainda manipulava o DDT. Os equipamentos utilizados na borrifação eram, muitas vezes guardados dentro de casa e serviam de brinquedo para as crianças. Existe ainda a tese de que o DDT presente no organismo das mulheres dos ex-guardas possa contaminar os filhos no ato da gestação.
O certo é que Alexandre apresenta um grave retardo mental. A mãe, Maria do Carmo – viúva de Dutra – não sabe explicar qual o problema do filho. “Ele já nasceu assim, não estuda, não trabalha, é totalmente dependente de nós”, revela.
Markelene Miranda da Silva, 31 anos, é a filha mais velha do presidente da Comissão DDT Luta Pela Vida, Aldo Moura. Ela também afirma que brincava com os equipamentos de trabalho do pai e gostaria muito de saber que riscos isso representa à saúde dela e dos dois filhos.
“Eu tenho problemas na vista, como meu pai. As minhas crianças são pequenas e o mais novo está com a idade óssea inferior a uma criança da sua idade”, conta. Ela também está disposta a tomar a frente do movimento, junto com o pai, para que sejam realizados exames em toda a família para saber qual o grau de contaminação em cada um dos membros.