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O Enigma da Esfinge

Estou na Antártida para conhecer a nossa Estação de Pesquisa que entre outros temas relevantes, também estuda o impacto das mudanças climáticas nas Américas, inclusive para a nossa Amazônia. 

Aqui, no continente gelado (depois que a temperatura baixou a mais de 6° negativos, parei de verificar o termômetro),  comecei a refletir sobre a emancipação feminina.

A distância de casa possivelmente contribuiu para a reflexão. Afinal esta é a primeira vez que passo um 08 de março longe das minhas companheiras.
Contactei  o gabinete para ter certeza que não esqueceram de enviar os documentos (sempre urgentes), dos estudantes de medicina na Bolívia; liguei para os meus filhos para saber se estão estudando e lembrá-los que a dedicação é necessária nesta semana de provas;  falei com o Edvaldo para ficar ligado durante os dias em que estarei fora;  com a secretária para lembrá-la de fazer a feira e arrumar o quarto de hóspedes porque teremos visitas em breve; disparei e-mails e mensagens falando da viagem e para saber se no PCdoB  deram continuidade as conversas em torno da nossa “chapa própria” para deputado estadual.

 Nossa! Lembrei agora que amanhã bem cedo preciso pedir para a secretária desmarcar minha consulta médica! Tudo isso enquanto tento apreender tudo o que posso das explicações sobre a revolução tecnológica aqui implantada e a maneira como isso foi decisivo para detectarem o aumento da temperatura global, o efeito estufa, o aumento do buraco na camada de ozônio etc.

Tento acompanhar os relatórios que me são apresentados, ao mesmo tempo em que  o olho comprido se estica na esperança  de ver um urso polar ou um pingüim.

E aí, percebo que a mudança da paisagem não alterou a minha rotina, continuo fazendo, ou pensando em fazer  mil coisas ao mesmo tempo.
 Da mesma maneira que milhões de mulheres, eu sei.

Começo a pensar que a nossa emancipação nos algemou, nos sufocou, nos colocou  correndo contra um tempo cada vez mais escasso, para darmos conta de afazeres cada vez mais numerosos.

Parece que deixamos de ser escravas do lar para nos transformarmos em verdadeiras “lançadeiras” cativas da culpa.

Culpa por mesmo correndo não poder acompanhar o crescimento dos filhos como gostaríamos; por não saber se agimos corretamente ao permitir a saída da filha adolescente com o namorado; culpa quando o casamento não vai bem; por não cuidar da casa, do jardim e das roupas; por ter perdido aquele curso  “fundamental” para nosso crescimento profissional; por ter descuidado da dieta logo naquela semana da festa; por desistir da academia; por ter faltado a um compromisso profissional porque o cansaço tomou conta do corpo inteiro.

 E, finalmente, a culpa por sentir culpa.

O fluxo condutor desse pensamento me leva a tentar decifrar o enigma da mulher contemporânea- seríamos eu e minhas companheiras  esfinges com a cabeças de Janus- com uma face voltada para o passado e outra para o futuro?  Os quatro olhos atônitos em busca de respostas que a meu ver só podem ser encontradas dentro de nós mesmas?

Na dúvida entre o prosseguir nesse ritmo alucinante de uma tripla jornada de trabalho e o retroceder para a impossível tranqüilidade não menos opressora da submissão, tenho a certeza de que o futuro está em nossas mãos: na maneira como estamos preparando e educando  as próximas gerações.
Como nossos filhos e netos vão enfrentar os desafios da vida, do companheirismo, do dividir tarefas, sem perder a sensibilidade, a sensualidade, a garra e o carinho?

Ou despertamos agora ou elas terão a mesma sobrecarga que atiramos sobre nossos ombros. A opção pode ser em-preender uma  marcha enérgica em direção ao futuro.

Na educação do futuro pode estar a libertação do presente se conseguirmos  reinventar a emancipação numa  espécie de Lei do Ventre Livre Permanente, ou seja filhos livres das cargas que arrastamos até aqui.

E aí, que venham nossas sucessoras – nem Evas nem Liliths, mas Marias, Anas e Raimundas. Mulheres que não precisem exaurir todas as energias as custas do bem-estar físico e mental, porque viverão entre pessoas que aprenderam desde cedo que ninguém precisa testar seu valor. Num mundo em que a aceitação dê o tom poderão finalmente ser  mulheres sim, com muito gosto.

A luta então terá valido a pena, companheiras.

 

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