Eu até cheguei um dia a pensar que poderia agradar as pessoas dando-lhes uma casa de praia de presente e um carro importado de mimo. Evolui, sim, mas não fiquei rico o suficiente, pelo menos em termos materiais. Tentei. Não deu. Todavia, alguém, em alguma esquina do mundo, disse a mim que um agrado melhor seria, possivelmente, eu, enquanto ser humano presente, participante. Jamais acreditei. Um outro – talvez o poeta Renan – foi bem adiante e garantiu que, se me fizesse acompanhar de boas palavras, amáveis, preferencialmente, as portas abrir-se-iam uma a uma ou de par em par por toda a minha vida.
Os meus meninos são afeitos às ciências exatas, notadamente, o mais velho, afiado nas questões da física e da matemática e estudante de engenharia elétrica. Eles tiveram dois filhos. Um é do ramo do turismo, parece-me… E veio depois uma garotinha sintonizada que fala dos problemas sociais seus e nossos de cada dia e segue em frente, a vara e a remo, escrevendo histórias brilhantes, espetaculares.
Depois de um romance premiado, a Raniffe Zahrah houve por bem compor um livro de contos. A mim, então, foi dada a honra de prefaciar a obra. Com o pensamento e os olhos fechados e voltados para uma Xapuri de antanho – a cidade Princesa – fui em busca da minha rua, do lugar onde eu nasci. Daí foi que lembrei que pertenço a uma geração de meninos.
De meninas e de letras
Dançava tangos e boleros de par com o tempo da juventude que lhe sorria, como o jardim outonal da frente da vivenda. Debruçava-se à janela com os olhos e o pensamento fixos no futuro que logo chegaria, e já chegou. Ou fazia as vistas correrem o mundo de uma ponta à outra da rua das castanholas em busca de um prato de folhas desenhadas onde, avidamente, pudesse comer letras novinhas, recém-nascidas da memória latejante, febril, como são os garotos e garotas que muito lêem e, por isto, tudo escrevem, inclusive para Deus; e tudo entendem, veem mais longe e não sofrem as agruras que são impostas aos ignorantes cujas oportunidades não vieram, ou simplesmente não foram abraçadas porque sequer tiveram condições de enxergá-las em meio ao turbilhão da vida dura. Uma pena.
Para o bem da verdade ou da ficção nossa de cada dia que Deus dá e leva, as meninas e os meninos, filhos e filhas da Princesa, não se cansam de bem agir para orgulho incontido da mãe sempre muito meticulosa nos afazeres da sua família real, ou da sua corte engendrada de látex, borracha, castanha, madeira certificada e futuro, muito futuro.
Então, é bom demais e é oportuno, aqui, lembrar que o prefeito da cidade maior, vizinha da Princesa – aquele rapaz com nome de madeira de lei – houve por bem promover um evento de onde seriam apontados os melhores poetas e cronistas dessa acreanidade cheia de amor para dar. Um dos filhos da realeza, o mais velho, ganhou três prêmios em três categorias diferentes do concurso. A menina que se alimenta de letras foi a vencedora do prêmio para o melhor romance. O poetinha, em calças curtas e gravata de borboleta, foi premiado porque deveras brilhante ao escrever um conto como se fosse brincadeira de criança…
E tudo é motivo de regozijo para a mãe zelosa. Por isto, ficamos gratos. Xapuri levou tudo, no dizer do promotor da festança.
E fomos juntos e felizes viajando muito mais pelas estradas da floresta densa que nos fez, enfim, chegar ao rio das nossas vidas, o aquiri. Na hora de render homenagens e declarar agradecimentos, então, nós sempre houvemos muito bem por fazê-los da forma mais justa, porque temos sempre um rumo mais ou menos traçado a partir do que deixou escrito São Gregório de Nissa, ainda lá na remota idade média: o primeiro e o único dever dos entes máximos da Criação é agradecer e agradecer sempre a Deus, inclusive ou tão somente pelo fato de estarmos com a respiração em dia.
Não mais do mundo fantástico, mas da realidade mais cristalina é que surgiu, em nossas vidas, uma figura extremamente simpática em seus cabelos lisos e brilhantes cortados rente à testa.
Então. E ele era cozinheiro, de mão cheia. Vivia a exercer esse talento numa casa de meninos gulosos e meninas bonitas. Talvez fosse quase como um filho da família, bem mais velho, não fosse a origem índia. Diziam-no caboclo e trazia por nome Agenor. Às vezes, quando ingeria a caiçuma, embebedava-se devido aos teores etílicos do milho e dizia para as crianças que iam vê-lo rindo sozinho, delirante:
– Lá na minha tribo ainda há um pé de peteca e um pé de baladeira.
E todos sorriam porque não acreditavam na realidade fantasiosa do caboclo; menos um dos garotos. Este ia lendo tudo o que lhe aparecia pela frente ou na pequena biblioteca do colégio de 1927. Fazia viagens pelos mundos fantásticos desde Gulliver e Exupéry, a Dumas e Alencar. Nesses volteios pelo planeta afora, ele também via árvores estranhas que, no outono, faziam pender letras dos seus galhos frondosos.
Também a menina que criou O homem da Rua Sadala Koury é assim. Ela vive ainda na rua das castanholas, na cidade princesa, a catar letras em árvores que brotam no seu quintal, desde épocas que se foram há muito, como o tempo dos coqueirais e da azeitoneira.
“- Gatos não gostam de mudar de casa”.
Assim, não me fiz de rogado e abri e não fechei e li e reli, vorazmente, em duas horas, talvez, a coletânea de contos que aqui apresento denominada Real do irreal. Trata-se do segundo trabalho da menina que se alimenta de letras e de bom vernáculo.
Assim é a Rannife Zahrah.
Aqui estão escancarados os sentimentos e as emoções de quem vive e respira e escreve tudo o que de melhor pode fazer. Ela passeia leve e livremente pelos caminhos da vida pulsante que lhe cabe existir. E pensa no quanto pode valer apenas “um instante ao lado de quem amamos…”
Há as dores das perdas e o júbilo das conquistas. “Foi em busca de sonhos: mudar o mundo era o propósito da sua vida”. Há, ainda, o foco centrado numa certa ânsia pelas respostas que a vida só nos dá bem mais tarde. E é esta busca e este afã que tornam a trajetória da menina escritora, e o fluxo das suas histórias, muito mais brilhantes, em vista da participação plena nos acontecimentos desta época.
Por nada ou por tudo ninguém deveria deixar de ler o que produz a verve juvenil e encantadora da querida Raniffe Zahrah.
Rio Branco, Acre, 30 de março de 2011.
* José Cláudio Mota Porfiro é escritor.