Crônica azeda como esta jamais chegará ao destino certo, porque boa parte da geração de líderes tupiniquins não conseguirá compreender com alguma nitidez a mensagem caótica que emana de texto tão impresumível, pessimista, contraproducente. Afinal, a fábrica de loucos da pós-modernidade não é criação minha.
Foi por aqueles dias, então, que um grupo de alunos do curso pedagógico houve por bem acercar-se de mim e fazer uma série de perguntas a respeito da desdita que eu garanto ser a profissão desses que dão aulas quase ganhando para não morrer de fome. Já no limiar da loucura, mesmo sem ainda tresvariar, apesar da pressão alta, da insônia e da tremedeira, mandou-me o quengo que fizesse síntese repentina, oitavada em boa métrica e infeliz rima, para o aplauso de uma maioria que, depois, desistiu de ser professor, felizmente:
Bicho espocado na prensa
Trabalha por qualquer recompensa.
Embora arrote filosofia densa,
Só o aprendiz diz o que pensa…
Subjugado, esfolado, subalterno,
Penitenciado, amarrado e interno
É mandado pro inferno
Mesmo antes de morrer.
Depois, sabatinado em sala cinzenta, lembrei Frei Beto nos porões da ditadura. Dia seguinte, fui postado em uma cadeira no centro do palco de um auditório calorento feito a peste. Fizeram-me umas cinco dúzias de perguntas. Nenhuma ficou sem resposta. Já me acostumara a andar armado até os dentes no que tange à argumentação relativa a qualquer tema que fira o direito de quem trabalha o real, como esse escravo perpétuo que come giz e tolera desaforo nas escolas deste país de desvalidos de informações enriquecedoras do espírito.
Uma aluna, localizada bem ao fundo do recinto, fez disparar neste pensador menoscabado a verve que sempre segue em frente e diz até bem mais que a verdade sobre o que se passou no concreto. Vai além do real.
É, minha senhora! Profecias aterradoras falaram a respeito do que aconteceria, como realmente aconteceu, a alguns dos que ali estavam presentes. Ô porca miséria! Eles se renderam ao sacerdócio maldito das salas de aula – fábricas de doidos – onde apanharão por anos a fio antes da morte prematurapor derrame cerebral. (O sistema rude e as crianças perversas assim o querem, como em Brinquedo Assassino, do Tom Holland.)
– Eminente! Depois de trinta anos no calor das salas de aula, o que diria o senhor sobre a relação entre os alunos de ontem e os de hoje?
Era o que estava faltando. Ô menina supimpa! Naquele momento, senti que, de alguma forma, um bom livro poderia vir a ser escrito por este misturador de palavras, antes que um Alzheimer me obscureça a mente.
E quase não parei de falar. Para o meu espanto, a assistência só aumentava em termos numéricos. O ambiente abafado regurgitava. Era gente saindo pelo ladrão. Tudo por causa dos versos que já haviam até sido decorados por alguns mais afoitos… Pensei no Emílio, o livro pedagógico de Rousseau.
No início da malfadada carreira, o professor erguia o braço e todos já se calavam prontos para ouvirem as lições sempre bem transmitidas, porque havia respeito, atenção e estima. Demonstrações de arte pura!
Depois, para a infelicidade geral da nação, vieram tempos que estão a perpetuar-se através do descompromisso de pais indolentes que não enxergam um palmo adiante dos narizes e, como resultado, não permitem que os filhos prosperem através do conhecimento.
Então, o que pode dizer um professor de talento médio ao ver, através da porta de vidro, um livro passar voando? Nada! Se falar a verdade, hão de proclamar que a loucura já se abateu por sobre a alma cansada do mestre que um dia pensou poder consertar o mundo a partir da realidade etérea reinante entre as quatro paredes da sala de aula.
Como friagem duradoura, chegou, daí, a época dos fortões, aqueles alunos que tomam injeção pra cavalo e frequentam academias de fundo de quintal só para meter medo nos professores, como aqueles dois que agora por último esfaquearam o bom professor do Juruá.
Amigo meu, certo Professor Xapuri, contraíra o diabetes e os músculos se tinham ido por obra dos açúcares. Não mais podia sequer falar alto, porque não seria razoável enfrentar um rapazola musculoso de dezoito anos, ou uma moça desbocada de dezessete, como antes, quando tinha braços tenazes.
Fora presenteado pela natureza com uma cara sem marcas da idade, pele limpa, postura altiva. Porusar cabelos tingidos, ninguém acreditava na idade já avançada. Todavia, estava alquebrado. Mas muitos diziam dele apenas estar enrolando, uma vez que o seu estado físico geral era aparentemente bom, como se o organismo tivesse a ver apenas com a pele bem cuidada e as roupas elegantes que costumava trajar.
O trabalho em três turnos fazia-o, diariamente, ficar cansado no terceiro, já a partir das oito da noite. Esgotara-se. Estava esfalfado. Pior que isso, ficara meio zureta, com a pressão alta, voz baixa, pernas doídas, dor de cabeça e náuseas já a partir da entrada na escola.
Foi então o professor em busca de ajuda. Ninguém o quis ouvir. Deveria, certamente, ficar em sala de aula até que daí fosse retirado por mãos alheias em vista do derrame que dele se acercava vagarosamente.
Resolveu, então, tratar-se sozinho, sem, inclusive, a compreensão ou o ombro amigo de alguns companheiros que deveriam fazê-lo em nome da amizade de trinta anos ao longo dos quais repartiu as dores do parto que é ver a loucura apoderar-se de si, vagarosa e sorrateiramente, sem que o patrão o perceba.
Em verdade, o senhorio, representado por líderes e bedéis, jamais acreditará que o professor, enfim, cansou. Este, sim, é o papel do patrão – o estado capitalista – que vê no horizonte apenas a possibilidade de o subalterno, enfim, sucumbir no meio de uma sala de aula infestada por escarnecedores de pouca idade.
Ora, meu professor também infeliz, a alta idade chegará e o cansaço haverá de te fazer desistir sem o reconhecimento do patrão que, ao final, passará a ver você apenas com um enrolão a mais que não pode merecer benefício algum antes de chegada a hora final. (Meditemos, pois! A solução pretendida pelo senhorio é que tu peças as contas e não tenha direito algum mesmo depois de trinta anos de serviço.)
Por isto, uma última determinação. Não coloquem o meu nome em escolas. Poderá faltar o acento do José… Não mais digam a ninguém que um dia fui professor. Recomendação já feita à prole que não me quer debaixo do chão antes das sessenta voltas, como se fosse possível.
Também aos meus filhos um dia eu disse que, se algum quisesse ser professor, faria dele um empresário do ramo dos alcoólicos, dono de boteco. É melhor ficar à mercê de bêbados, que de um escravismo que vê o professor apenas enquanto máquina humana que um dia será descartada porque cansou.
Talvez já seja este o meu fim de linha. Quiçá tenha sido essa a hora marcada para o reencontro com Deus. Quem sabe a minha obra já esteja completa e a sua continuidade estará, já, projetada para fazer o bem em outros mundos. Certo é que já fiz o que tinha de ser feito.
Resta lembrar Álvares de Azevedo cansado do mundo aos vinte e um anos mortos:
(…) Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã…
A dor do peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!
Chegada esta última hora, enfim, os inimigos sentirão alívio em razão das verdades cortantes que lhes ferem os tímpanos e a alma bruta. Alguns filhos sofrerão de uma enorme saudade que arrefecerá em duas semanas. A viúva ficará em dívidas de gratidão para com o ótimo marido que não tentei ser, e nunca fui. Será, então, a vez do suspiro derradeiro antes que as vísceras passem a nutrir os vermes todos do deserto de lama podre no qual fui enterrado.
Parabéns, algozes e torturadores! Vocês venceram.
* José Cláudio Mota Porfiro é um cronista desatrelado: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br