Na distância, as luzes tremeluziam e traduziam a poesia do velho esteta, indiscreta, como a alma do suarento poeta, nas mais variadas cores, revolvendo velhos amores, que passaram tão rapidamente e, consequentemente, deles já sequer ficou a semente da idade que roubou um tanto de emoção que sucumbiu no choque com a razão e quase morreu, mas não feneceu. Ontem mesmo floresceu. Uma beleza!
Pois bem. É como nas histórias de uma outra época. Ele viveu a realidade da infância da única forma honesta, que é tomando-a como uma fantasia. Não mentiu, não burlou, não enganou, mas se encantou plenamente, docemente, como não seria impossível.
Observei-o, em outro dia, na rua das mangueiras, ainda na pouco distante terra querida. Escassa idade. Dezesseis voltas, talvez. Exalava verdor, fervor quase infantil, débil, pálido. Falava pelos calcanhares e pelos cotovelos. Dizia-se ter estrela própria e depender de poucos para conseguir da vida o que queria. Deixei-o lá, entre os que o ouviam, talvez um ou dois transeuntes. Ele não me viu e eu sequer o cumprimentei. Mais tarde, concluí as minhas impressões sobre a arrogância para o estalajadeiro boquiaberto. Disse-o, à moda do Eugênio Andrade, pensador português, que, quando se é muito jovem, é quase impossível não ser pretensioso. Nem eu acreditei no que acabara de falar ao sábio homem. Ele muito bem compreendeu e até me aplaudiu. Que coisa!
Na adolescência é mesmo assim, ou foi quase dessa maneira, como se os pássaros todos fossem azuis, ou verdes claros. Como se as lampadazinhas da idade todas ofuscassem de tanto brilho e tanto piscar, e as águas do seu riacho interno borbulhassem ininterruptas de tanto frescor, de tanta harmonia em seu vir sempre contra a ravina do tempo inconstante, inconsistente, inocente da vida em fase inicial de mil esperanças. Ah, menino!
Foi quando um novo personagem do tempo cruel das folhas secas – um certo herói da mais tenra infância – fez pergunta escorregadia, ou quase:
– Meu bom garoto! Você é tão sabido… E já namora? – Ao que o menino bebê de nove ou dez voltas respondeu:
– Oh, tio! Sim, eu tenho namorada.
– E quem é a sua namorada?
– O nome dela é Lucy e também mora na mesma minha rua das caramboleiras, mas já de ladeira acima no rumo do campo de gado.
– Oh! Que menino!… E vocês namoram na escola? Não é proibido?
– As freiras podem nos castigar e, por isso, namoramos na praça, depois da aula, ou à noitinha.
Ironia do destino social aí se firmou. A antropologia do machão latino americano, que foi o pai, lhe falou mais alto: o homo sapiens por aqui nascido nesses confins amazônicos é exatamente assim. Mesmo inocentemente, vai treinando para mentir cada vez melhor com a finalidade de enganar a si próprio e, depois, às circundantes fêmeas que rondam ao redor. Uma lástima. Elas já não acreditam num teu único ponto e vírgula, porque apenas os homens mais sensíveis para com as causas femininas usam este apetrecho da escrita com alguma competência.
E foi a primeira vez.
E depois, então, um pouco mais tarde, já se havia ido a última quimera, e o resto de inocência também. Enfileirou corações ávidos pelo amor de um insensível e insaciável. Fizeram dele, ao mesmo tempo, herói e anti-herói de alcovas cheirando a alfazema ou patchouli. E o janota fez e desfez e garantiu sedução a todas quantas o viram na galeria, ou em banho de cuia no igarapé. Ainda acorrentado a costumes de outrora, prometeu amores e felicidades de que não dispunha ou jamais dispôs em momento algum. Pulou janelas, silenciou portas, mordeu zíperes, abriu botões, rasgou lençóis, quebrou cristais e se enfiou onde não devia.
Um dia, então, quando vivia a flor da boemia e da vida noturna serena e voraz ao mesmo tempo, houve por bem acompanhar-se de uma linda flor primaveril de apenas dezesseis voltas. Mais uma loucura dentre toda uma vida cheia delas.
Romântico foi demais. Havia um jambeiro. Chuva fininha. Corpos sem roupa desmesuradamente mais ávidos que felizes. A luz da lua misturava-se aos reflexos da artificialidade vinda de uma luminária próxima, o que, aos olhos humanos entorpecidos, tornava de prata as gotas que caíam sobre ancas juvenis, mas possantes. Ah! Eis a libido em chamas e a alma que pulava doida em vista da aventura rocambolesca em que o corpo vil houvera por bem meter-se. Enfim, o vermelho carmim borrou os lençóis inexistentes. Talvez fosse já a hora do adeus ou do até nunca mais. Ledo engano.
Romance barulhento de poucas luas. Uma vela ou lamparina acesa na chuva fininha houvera por mal testemunhar o pecado que deixara um hímen arrastar-se na lama débil. Um escândalo, um alvoroço na freguesia ainda em estado de província, onde um troteador não podia fazer das suas e já a opinião popular o queria casado em tinta preta passada em papel branco. Ô povo triste!
Por do sol nos corredores da avenida e o mundo inteiro já sabia que um playboy bon vivant havia feito desabrochar menina meiga e bela da rua dos jambeiros. Também, logo a autoridade se fez ciente. Bem mais grave: era dela tia avó, e juíza da comarca da cidade de Eleutério. Uma bomba!
Veio a formatura. Ele se fizera doutor não-sei-lá-das-quantas. Lá estava presente a mocinha bela na sua adolescência roubada. Casaram-se, em seguida, por um contrato celebrado em cartório, que durou três longos meses, para ambos.
O casório forçado não daria certo nem entre um monge e uma monja. Alguém enjoou a convivência mínima atroz. Foi aí que ele empreendeu fuga planejada, premeditada. Voou para Belém de Judá. De lá, fez telefonema alegando que nunca mais voltaria. Para a mocinha, tudo se fez noite sem festa. A vida murchou. O colorido acabou. Desfez-se, enfim, o seu mundo encantado de quem seria feliz para o resto da vida.
Passados meses, reataram o romance por uma noite, e foi apenas isso. Não. Nunca mais! O fogo fátuo arrefecera…
Para ele, arrependimento vão, inócuo, descabido. Um saltimbanco interiorano – disseram à época – havia se aproveitado da inocência de uma menina antes feliz. Oh, sim! Os provincianos tinham toda a razão do mundo. Houve excesso de confiança por parte dela e exagero de ilusionismo da parte do bardo pilantra.
Enfim, já acima da meia idade, aperfeiçoando-se na arte de bem seduzir, ele passou a fazer versos porque começou a acreditar no Fernando Pessoa, segundo quem o poeta é um fingidor; finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.
Depois do quinto decênio, sobre a arte do ilusionista, então, infelizmente, foi o anjo torto obrigado a registrar que, cá entre eles mundanos desprezíveis, as ilusões são como a luz do dia; quando se apaga, com ela tudo desaparece.
*Crônicas poéticas dadas à luz por um vate nascido sob o sol morno de um abril qualquer do século anterior, no Principado de Xapuri.