“O antropoceno aumenta o risco de um planeta sem democracia e sem o homem”. Esta frase é a tradução do título de um artigo escrito pela professora de ciências políticas da Universidade de Melbourne, Austrália, Robyn Eckersley, publicado no final do mês de março na revista online The Conversation. Consideramos este artigo extremamente relevante e contextualizado com a situação ambiental planetária atual porque ele discute os impactos que o Antropoceno, a idade geológica que vem sendo forjada pelo homem há mais de 200 anos, poderá ter no futuro político e biológico da espécie Homo sapiens no planeta terra. O texto a seguir é uma tradução resumida do artigo da professora Eckersley, intermeada com algumas explicações e discussões adicionais.
O termo Antropoceno tem deixado muitos defensores do sistema democrático nervosos sobre o futuro do mesmo. Os cientistas tem afirmado que a terra saiu da época Holocênica diretamente para o Antropoceno onde a força geológica dominante e que tem alterado o planeta é o homem. Enquanto nos últimos 11,5 mil anos o Holoceno propiciou, sob o ponto de vista climático, um período relativamente estável para a emergência e o desenvolvimento da civilização humana, o advento do Antropoceno, há cerca de 200 anos, pode ser caracterizado como uma época de mudanças ambientais imprevisíveis e possivelmente abruptas e cataclísmicas.
Os cientistas alertam que se mudanças drásticas na atitude humana frente ao planeta não forem tomadas, as mudanças promovidas pelo homem criarão um clima e uma biosfera impróprios para a civilização humana. Sintetizando: para evitar um desastre nas próximas décadas, o homem terá que confinar suas atividades em um ‘espaço de ação seguro’ no limite do nosso planeta.
Alguns especialistas acreditam que se as negociações sobre o clima falharem em manter o aumento do aquecimento global abaixo de 2ºC os regimes democráticos não sobreviverão em um planeta aquecido e sem lei, marcado por eventos climáticos extremos, colapso ecológico, escassez de alimentos e outros recursos naturais, milhões de pessoas emigrando das regiões afetadas, e aumento de conflitos e da violência. Alguns até mesmo já estão convencidos de que a mudança incontrolável do clima esta em curso e que podemos esperar uma era de autoritarismo no mundo.
A perspectiva do colapso da civilização humana no planeta tem sido usada para justificar a suspensão ou bloqueio de sistemas democráticos para garantir a proteção do planeta. Acredita-se que apenas o autoritarismo ou uma condução tecnocrática do planeta poderia viabilizar, por exemplo, a aplicação de técnicas de geoengenharia visando o controle global da radiação. Em ambos os casos a democracia sairia perdendo. E mesmo quem que não concorda com essas alternativas já demonstrou ter pouca fé na capacidade das democracias liberais, multilateralismo ambiental ou em propostas de ‘sistemas de governança planetária’ de iniciarem uma transição ecológica.
A questão para o sistema democrático é a seguinte: como o advento do Antropoceno pode ser colocado para expor e superar as limitações das atuais democracias? Como o debate e a prática democrática podem ser radicalizados de tal forma que possamos estar mais preparados para enfrentar os desafios ecológicos globais?
Uma reflexão crítica nos fundamentos das democracias liberais atuais (tempo, espaço e comunidade), mostra que eles não são apropriados para o enfrentamento dos desafios representados pela proteção ambiental de longo prazo de nossa sociedade e do planeta. Essa opinião se baseia não apenas nos curtos ciclos de eleições (a cada 4-5 anos), mas também na participação política e poder de barganha desigual de diferentes grupos sociais no processo de construção de políticas públicas, baixos níveis de conhecimento ecológico da sociedade como um todo (e da maioria dos políticos) e, nos casos onde existe a concentração de propriedade dos meios de imprensa, a distorção da consciência coletiva.
Temos de convir que juntos os elementos descritos acima permitem que interesses particulares bem organizados (lobbies) influenciem políticas de amplo alcance em detrimento de interesses da maioria da sociedade, quase sempre mais difusos e defendidos de forma menos organizada. Mas mesmo que esses problemas pudessem ser resolvidos, as democracias liberais perpetuam um problema democrático fundamental: políticos eleitos não são obrigados a prestar contas de suas decisões a pessoas que não sejam seus eleitores como, por exemplo, estrangeiros, espécies não humanas e as gerações futuras. Mesmo que essas decisões tenham efeitos sociais e ecológicos transfronteiriços e de longo prazo.
Enquanto as democracias liberais consideram os cidadãos como membros de uma nação, no Antropoceno somos todos meros habitantes do planeta terra, terráqueos. Nessa nova época geológica o lugar onde cada um de nós nasceu importa menos do que o fato de que habitamos um planeta que caminha para se tornar menos favorável ao florescimento e mesmo à nossa sobrevivência e de outras espécies.
Uma crítica comum à ideia do Antropoceno é de que, ao focar nosso destino comum como humanos ou terráqueos, deixaremos de lado as questões de classe, raça, gênero e outras desigualdades sociais. Da mesma forma, poderemos desviar a atenção para longe de temas cruciais como poder, geopolítica e o legado do imperialismo, que produziram um mundo no qual a distribuição dos benefícios e obrigações é extremamente injusta e enviesada. Nesse contexto, como afirmam Malme e Hornborg, as causas das mudanças globais são sociogênicas e não antropogênicas. O Antropoceno não pode oferecer uma explicação para a crise ecológica ou uma receita política para a mudança, mas pode permitir uma locação da história econômica e política no contexto do tempo geológico.
As forças sociais e institucionais mais comprometidas com o surgimento do Antropoceno, o capitalismo e o estado político moderno, surgiram com a revolução industrial. O mesmo se aplica à democracia moderna e o desenvolvimento de economias dependentes de combustíveis fósseis. Os partidos políticos representantes dos interesses dos detentores do capital e do trabalho também são da mesma época. E esses partidos, não importa se dominados por ideologias políticas liberais ou socialistas, sempre viram o meio ambiente como um mero pano de fundo onde, em última instância, o drama humano está se revelando nos dias de hoje.
Artigo continua…
* Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa/Parque Zoobotânico da Ufac
**Foster Brown é Pesquisador do Woods Hole, Docente do Curso de Mestrado em Ecologia e Manejo de Recursos Naturais (MEMRN) da (Ufac. Cientista do Experimento de Grande Escala Biosfera Atmosfera na Amazônia (LBA), do INCT SERVAMB e do Parque Zoobotânico (PZ) da UFAC. Membro do Consorcio Madre de Dios e da Comissão Estadual de Gestão de Riscos Ambientais do Acre (CEGdRA).