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Tragicômica, romântica ou dramática

O pescador observava o menino na distância. O primeiro, em um barco ao sabor das ondas leves do verão ao vento vindo da orla. O outro, sentado num desses troncos de velhas árvores que ficam encalhados na areia por anos a fio, já meio calcificados. Ambos portavam binóculos retrógrados, ultrapassados mesmo, mas muito úteis. Um observava a vila feliz e em rebuliço, enquanto os seus anzóis não fisgavam algo mais interessante. O outro esquadrinhava o mar atrás, talvez, de um rabo de sereia, em top less, vestida apenas em biquíni rosa choque ou verde esmeralda. Coisas de uma infância feita tão somente de observar muito e sentir pouco.

Em poucos anos, muito haveria de acontecer. Os redemoinhos a que os humanos estão submetidos são, na superior maioria dos casos, mera e marcadamente imprevisíveis. Pouco há que se possa fazer, quando os desatinos levam a barcaça frágil da criatura rumo aos rochedos que podem fazer tudo tornar-se frangalhos rotos frutos de toda uma vida de buscas e planos.

A vida do garoto, agora maior de idade, sofreria um solavanco desses incomuns que abalam as estruturas frágeis dos mais novos ou mais velhos não tão experientes para bem lidar com as mais graves vicissitudes da vida.

Certo é que, depois das ocorrências trágicas, o poeta pescador encontrou, sob os escombros da antiga residência, narrativa interessante feita em uma pequena brochura chamuscada pelo fogo.

O garoto não era afeito aos estudos. Pouco ia à escola. Passava a maior parte do tempo a vislumbrar a imensidão em busca de respostas para perguntas que não fazia para si próprio e muito menos para os demais. Tinha projetos, como todos, mas as bases destes estavam assentadas em areia movediça ou lama pútrida, posto não ter ideias nem pistas mais claras a respeito dos altos e baixos existenciais.

Um plano atrás do outro ia por água abaixo, como restos de árvores em corredeiras íngremes. Não sabia vender por sempre se deixar enganar na passagem do troco na feira onde servira de ajudante. Não sabia entregar, uma vez que a bicicleta antiga sempre o levava ao solo por estar com a cabeça, no mais das vezes, no mundo da lua. Apenas sabia observar, inclusive, a vida dos vizinhos a respeito das quais passou a tecer comentários sempre desairosos. Não tinha profissão definida, mas ninguém o definia enquanto vagabundo. Era apenas desajeitado e voador.

Naqueles tempos de fundação da cidade, moça bela houve por bem aconselhá-lo a tornar-se representante do povo na casa de vereança, uma vez que, ao menos fazer continhas mínimas, ler alguma coisa e assinar o nome ele sabia. Com um currículo como estes, já estava apto a tornar-se mais um grande mentiroso dentre os tantos que a política partidária espalha por aí afora, com raríssimas exceções.

Fez-se um reles político e não apenas aprendeu a mentir em público, mas também a fazer vezes de um faroleiro e falastrão que se aprimorava do dia para a noite e a olhos vistos.

Notório era que as deficiências culturais e de formação doméstica poderiam levá-lo a situações de perigo conquanto estava sempre disposto a ofender com palavras rudes qualquer contendor seu que não era exatamente adversário, mas um inimigo visceral. Em síntese, nele não havia estrutura psicológica suficiente para os embates ideológicos escorregadios em que alguns se exaltam e se exasperam em argumentos repletos de razões fugidias ou mentiras tacanhas. Melhor seria jamais acreditar ou ir-se sem dar bola aos mexericos próprios da vida em cidades pequeninas.

Segundo o cronista e repentista da comunidade beira-mar, o garoto fora dado à luz na cidade de Casimiro de Abreu, em fins da década de 1940. Com os pais, vivera por algum tempo em Grumari mas, em seguida, juntos, preferiram a calma e as areias brancas de Barra de Guaratiba, onde o menino passava quase toda a tarde, sozinho, absorto, pensativo, atirando pedrinhas ao mar.

Os pais viram a violência de perto, perderam o gosto pela moradia anterior e resolveram comprar uma velha casa junto à praia. Fizeram alguma reforma mínima, em vista das parcas condições materiais e passaram a residir, sim, com um casal de filhos, dos quais o garoto se sobressaía por nunca estar dentro de casa, talvez por não gostar da aparência e das condições da moradia um tanto combalida, digamos assim.

Cedo, a família passou a frequentar encontros com alguns religiosos cuja iconoclastia venerava ícones travestidos em dinheiro tirado da fé de pessoas humílimas, como eram eles. Em suma, não tinham o de comer, mas sempre havia o quinhão com o qual colaboravam para a obra de não sei qual ídolo de barro ou ouro que prometia o céu mas gastava o dinheiro na terra sobre a qual erguera mansão vistosa na cidade de Ubatuba.

Da iconoclastia e do fanatismo religioso, veio a intolerância ideológica, exatamente, contra homens e mulheres que, naquele espaço, pregavam a igualdade de oportunidades entre todos. A estes, desde menino, o nosso bandoleiro taxava de comunistas do inferno.

Dado foi que, a partir de certo momento, tornou-se um religioso e político partidário ao mesmo tempo. Estava, então, a um passo do crime.

Em um momento, em praça pública, ele erguia o livro sagrado e dava depoimentos próprios de um pregador de boa-fé. Nas ocasiões em que o voto popular valia uma vida, ele andava armado até os dentes, como diziam alguns dos seus críticos.

Um dia, pois, sobre uma carroceria a servir-lhe de palco, vociferou insultos muito graves contra desafetos que buscavam a política da boa vizinhança em que valem as melhorias de vida para todos independentemente de quem quer que seja.

Houve um alvoroço e alguns buscaram armar-se com paus e pedras para o embate físico contra os opositores. Ele sempre houvera insultado a todos, mas nunca vira uma confusão tão generalizada.

Foi quando um capoeirista o encarou de frente e passou a fazer os rodopios próprios da sua arte. Com medo, ele sacou de uma arma potente e desferiu um tiro meio a esmo. Dentre alguns estampidos, apenas um fez uma adolescente ferida de morte.

O rapazola, agora quase a completar trinta voltas, foi acusado do crime, mas tomou rumo ignorado levando com ele a família, poucos bens e muito dinheiro surrupiado da fé pública.

A menina alvejada veio a falecer no hospital militar de angra, três ou quatro dias depois do reboliço.

Com sede de justiça, alguém dentre os desafetos – agora um grupo de revoltados – tocou fogo na velha residência, por vingança. Uma selvageria a mais que não justifica uma atitude extrema, até porque, como diziam os vizinhos, a justiça já havia sido feita, pois, segundo comentários, ele estaria preso em uma delegacia de São José dos Campos.

E o cronista da comunidade seguiu anotando…

Pensei já não mais vivêssemos a contemplação do absurdo. Teríamos, talvez, ultrapassado os tempos de barbárie. Todavia, o homem continua lobo do homem. Temos permanecido insatisfeitos, amargos e intolerantes.

Augusto Boal, criador do teatro do oprimido, diz que, pela manhã, ao abrir o jornal, em qualquer página que seja, já se depara com o motivo para a elaboração de mais uma peça teatral, seja tragédia, romance, comédia ou drama.
É mesmo assim na vida como na arte.

*Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: