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Nas adjacências do amor

Temos nascido todo santo dia que Deus dá. Aqui e ali, cá e acolá, há sempre alguém a dizer que pensou já ter visto tudo nesta vida, mas está surpreso com uma novidade brusca qualquer. É mesmo assim. É regra quase sem exceção. Todavia, muito melhor ainda é perceber que o ser humano é encantador, se levarmos em conta o geral da humanidade. É claro que o poeta do absurdo sempre busca esquecer a porcentagem formada pelos humanoides desumanizados. Bom é constatar que só pelo fato de a Criatura irradiar tanto amor já está de bom tamanho. Por Deus.

O mundo é visto a partir de nós mesmos enquanto algo em permanente transmutação. Cá estamos à mercê do pressuposto segundo o qual o homem é livre e, de repente, algo nos permite negar o próprio argumento anterior na maior cara de pau. A liberdade humana passa a ser relativa. Então, às vezes, basta uma pequena mudança de paradigma, um diálogo minimamente aplumado, para vermos uma luz diferente ou algo mais familiar logo ali bem diante dos nossos narizes obtusos.

Foi navegando por estas nesgas do pensamento que ele encontrou Dafne, apelidada Estrelinha. O poeta não a persegue, mas a encontra, dia sim, dia não, no parque, por estas caminhadas da vida, e tudo passa a ser bem mais que uma mera análise acurada deste tempo velho cansado de guerra, justamente, pela carga antropológica que lhes enfeita a alma. O ser humano é o centro de todas as atenções, sim. Para nós, sempre será.

Dafne não é mitológica, é real, mas parece ter saído de um conto erótico de fadas saxônicas do final do século anterior. Nasceu em Southampton, Inglaterra, forte de feições, tem compleições físicas incrivelmente avantajadas e reside por aqui desde o ano dois mil, quando chegou ainda em criança, aos doze. Loura oxigenada, alta, porta um rabão lindo e peitos em silicone. Faz-se elegante em roupas e sapatos de jogging de alto padrão. Educada, fala comedidamente e gesticula de forma bem leve. Uma lady e uma musa inspiradora do poeta sem traquejo, mas cheio de amor para dar e para vender a preços irrisórios. Em liquidação.

Viveu tempos de altos e baixos, no início, mas, hoje, traduz textos de todos os estilos para o português. Em síntese, é feliz. E bela.

A superior maioria dos ditos machos latino-americanos, afoitos por natureza, à sua passagem, reviram os olhos e entortam o pescoço a desejar o seu rabo de sereia, numa alusão aos Paralamas. E vai que vai, bem acompanhada de um ente que a deseja desde que o mundo é mundo. Ora, pois!

Em sentido contrário, caminha uma moçoila estilo fortinha, tipo meio na contramão. A cara amarrada denota decepções existenciais, no mínimo, ao longo dos últimos vinte anos. Por pouco uma não abalroa a outra, o que seria bem mais que um incômodo para ambas, tendo em vista o biótipo de uma e da outra.

– Porra!… Tu tá doida, loura falsa? Vê por onde anda, caráter! – Foram estes os cumprimentos pouco gentis da preciosa pequena e fortinha, ao que a bela sequer deu atenção. Mulher bem resolvida e de fino trato é outra coisa. Nem tchum, como dizem os modernosos.

A moça meio rechonchuda se foi e dela ficaram apenas ternas lembranças, para não a contrariar ainda mais nos seus recalques bem íntimos.

Como não poderia ser diferente, a conversa entre o versejador e a musa pendeu pra lá. Alguém até ousou olhar para trás. Era Domingo à tarde e tudo fluía mansamente, como aquele diálogo entre duas pessoas bem informadas. Pequenas abordagens passaram a ser feitas acerca da existência de pessoas tão recalcadas e vociferantes a partir dos nervos à flor da pele. Certo e de acordo estavam que haviam motivos muito sérios, é óbvio, na base das frustrações de muitas mulheres. Por que tanto azedume em uma pessoa só?

O poeta foi simplista e afirmou que na origem de tudo está a ditadura masculina que vive um apogeu relativo desde as primeiras eras.

Acrescentou ele que, em um certo primeiro plano, as famílias, marcadamente patriarcais, ainda tolhem as possibilidades de formação intelectual das moças, principalmente, aquelas das classes menos favorecidas, segundo quem o privilégio dos estudos deve ser dado, prioritariamente, aos meninos que também dificilmente chegam ao patronato. Uns e outros amargarão uma vida de privações por aí afora, notadamente, as mulheres que passam a depender de maridos sem as mínimas condições de um convívio pacífico em vista da falta de recursos materiais e espirituais, na maioria dos casos.

Depois, quando casadas, também os maridos sem instrução não permitem que as pobres esposas alcem voos mais altos no rumo da autonomia econômica e financeira. Daí as frustrações que elas passam a carregar pelo resto das suas vidas.

Como já expusera os seus pontos de vista, entre um gole e outro de água, o poeta arredio achou por bem pedir da Estrelinha a sua opinião pessoal acerca dos traumas femininos na pós-modernidade.

– Bem. Por assim dizer, sem muitos rodeiros, porque eu não sou disso, não sou doutora em porra nenhuma, há mulheres que acham que ter um homem ao lado, que andar de par com alguém que as assuma e as ame entre aspas – sobretudo um cara rico – é o mais importante para se sentirem bem vistas socialmente, para se sentirem aceitas. Quando, na realidade, elas vivem, sim, uma vida de infelicidade e de aparências, são desrespeitadas e traídas pelos parceiros. Preferem viver assim, tudo para não serem vistas sozinhas, nas suas próprias companhias. Desta forma, boa parte delas opta por se submeter a uma vida frustrante, por medo da solidão e de uma série de outras questões. Mais cedo ou mais tarde, enfim, são largadas ao léu.

– Isto aqui não é receita de bolo. Há homens bons por este mundo de meu Deus, mas eu não quero meter os brasileiros nisso. – Foram as palavras do poeta abobalhado, ao que ela foi incisiva:

– Você, por exemplo, rodopia para cá e para lá e nunca encontra a cara metade com quem queira dividir um chamego e uma convivência na sua vivenda aprazível. Vejo que em homens assim as mulheres depositam todas as fichas, toda a confiança, em um cara egoísta, que não vale a pena, e, depois, se decepcionam profundamente, por confiar demais. Não veem que os rapazes casadoiros, hoje em dia, mínguam como chuvas no deserto. Melhor é que elas se garantam por conta própria e depois se amasiem com alguém de qualquer gênero, mesmo temporariamente, enquanto for o caso.

Mais tarde, rememorando as palavras da musa e diva Dafne, já na solidão do seu microcosmo, o poeta, então, disse a si mesmo preferir refletir como o Agostinho da Silva, livre pensador português do século passado, em um raro dia de calor, em Setúbal, para quem a mulher está muito mais perto da natureza que o homem, porque há nela os mesmos encantos e os mesmos perigos.

Mas é também saudável rememorar o senhor Wilde para quem as mulheres existem para que as amemos, e não para que as compreendamos.

Em síntese, a Estrelinha é daquelas que diz o que vem na telha. O jogo de cintura abunda, realmente. Mas a ela faltam muito traquejo, alguma diplomacia, o que a desabilita a um conluio amoroso mais sério com o versejador em gozo perpétuo.

Ademais, bem pior é perceber que, do jeito que a coisa vai, já não há como sequer ponderar sobre as possibilidades de uma mancebia com a ninfa. Foi isto o que confessou ensimesmado o poeta de tortos vícios.

CLÁUDIO MOTTA-PORFIRO, Escritor. Autor do romance O INVERNO DOS ANJOS DO SOL POENTE, disponível nas livrarias Paim, Nobel e Dom Oscar Romero; e na DDD / Ufac.

A Gazeta do Acre: