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Os alemães também planejaram contrabandear sementes e mudas de seringueiras da Amazônia (Primeira parte)

Todo mundo no Brasil, e no Acre em especial, deve ter conhecimento sobre o contrabando de sementes de seringueiras da Amazônia realizado pelo aventureiro inglês Henry Wickham em 1876. Embora ele seja considerado o pai da biopirataria por este ato, temos que admitir que ele não agiu sozinho e contou, com toda a certeza, com o auxílio e a conivência de ribeirinhos e indígenas que viviam no entorno de Santarém-PA, onde ele havia se estabelecido – em um sítio – e por vários meses se embrenhou nas matas locais para poder completar o lote de cerca de 70 mil sementes que enviou para o Jardim Botânico Real em Kew, nos arredores de Londres.

Do numeroso lote original de sementes, apenas cerca de 3 mil delas germinaram e de Londres foram enviadas para as colônias inglesas do Sudeste Asiático para servir como produtoras de sementes para os extensivos plantios que foram feitos por toda a região. Cerca de três décadas depois, por volta de 1913, a produção de borracha proveniente de cultivos existentes nas colônias inglesas da Ásia superou, pela primeira vez, a produção brasileira. Em 1919 os ingleses já controlavam 95% da produção mundial de borracha e causaram a ruína econômica e social da Amazônia.

Muito já se discutiu sobre o que teria acontecido se o biopirata inglês tivesse falhado em seu intento. De fato, o envio das sementes no vapor inglês “SS Amazon” foi ao mesmo tempo um golpe de sorte e se constitui na parte mais arriscada de toda a operação de contrabando. O golpe de sorte foi o fato de o navio ter tido parte de sua carga roubada, abrindo espaço em seus porões para as sementes colhidas por Henry Wickham. A parte arriscada da operação de contrabando foi eliminar a possibilidade de apreensão das sementes pela aduana brasileira, que na época havia estabelecido vários postos de controle ao longo do rio Amazonas e em Belém.

Segundo se conta, Wickham declarou falsamente na papelada de exportação entregue para a aduana que a carga consistia apenas de “espécimes exóticos e delicados” para os jardins da rainha Vitória. As sementes, no entanto, tinham sido acondicionadas em 50 cestos indígenas rudimentares forrados com folhas de bananeira (para ocultar as mesmas) e era óbvio que qualquer inspeção, por mais superficial que fosse, iria descobrir a farsa. Mas segundo o historiador Americano Warren Dean, Wickham escapou de uma inspeção mais rigorosa graças ao então cônsul inglês na região, que, agindo como se não existissem autoridades brasileiras na região, conseguiu liberar o navio sem que os fiscais brasileiros pudessem fazer a inspeção.

Entretanto, mesmo que o contrabando inglês tivesse falhado a derrocada da produção de borracha na Amazônia brasileira muito provavelmente seria adiada por apenas mais alguns anos.

Lendo a recente tradução para o inglês da biografia do naturalista, explorador e pesquisador alemão Ernst Ule (1854-1915) descobri que os alemães também tinham planejado contrabandear sementes de seringueira da Amazônia para suas colônias na África tropical e no Pacífico Sul.

Mas o “assalto” alemão seria muito mais completo. Programado para se iniciar em 1899, ele incluía o contrabando de sementes e mudas de todas as espécies de seringueira até então conhecidas – 10 espécies – e de qualquer outra planta que estivesse sendo explorada para fins de produção de borracha. Além disso, estavam previstos um amplo estudo para conhecer a distribuição geográfica das diferentes espécies e sua ecologia, assim como os métodos de extração e beneficiamento do látex empregados pelos seringueiros da região na época.

Embora mais bem elaborado – quando comparado com o improvisado plano inglês levado a cabo por Wickham – e com grandes chances de atingir seus objetivos, o plano alemão começou a dar errado quando a pessoa contratada para liderar a empreitada – Dr. Kuhla, um jovem botânico baseado no Instituto Botânico em Marburg – faleceu vítima de febre amarela um mês após seu desembarque em Manaus.

Diante do imprevisto, os financiadores da empreitada – o empresário alemão baseado em Manaus Nicolas Witt e o poderoso político alemão (Senador) Heinrich Traun – contrataram por indicação do Diretor do Museu Botânico de Berlim o pesquisador Erns Ule, um botânico com muita experiência de campo no Brasil, onde era residente permanente e tinha ocupado o cargo de subdiretor do Departamento de Botânico do Museu Nacional no Rio de Janeiro. Para mascarar as reais intenções do trabalho a ser executado por Ule, seu contrato de trabalho foi realizado apenas com o Museu Botânico de Berlim. Assim, para todos os efeitos, sua missão tinha caráter eminentemente científico.

Ernst Ule chegou a Manaus em julho de 1900 e por indicação do Consul alemão em Manaus ele resolveu visitar inicialmente o baixo rio Juruá, nas proximidades de sua desembocadura no rio Solimões, para onde partiu em 15 de agosto e retornou no início de dezembro. Durante esta parte da viagem ele se concentrou em identificar as principais espécies produtoras de borracha encontradas naquela região: árvores do gênero Hevea (seringueiras), Castilloa (caucho) e Sapium (seringarana). É possível que pelo período da viagem, Ule não tenha sido capaz de encontrar sementes de seringueiras – que começam a cair apenas no auge do período das chuvas na região (dezembro-fevereiro). Entretanto, das amostras botânicas (folhas e flores) colhidas por Ule e enviadas para identificação na Alemanha resultou a descrição botânica da árvore do caucho em 1905, cujo nome científico é uma homenagem a ele: Castilla ulei.

No dia 27 de março de 1901, depois de ter organizado e enviado para a Alemanha as amostras que tinha colhido durante a viagem do ano anterior, Ernst Ule partiu novamente para explorar o rio Juruá. Dessa vez, entretanto, ele resolveu subir o rio até chegar ao Acre, tendo atingido, em 25 de abril, a região da boca do rio Tejo, um pouco acima de onde hoje se localiza a cidade de Marechal Thaumaturgo. Ule permaneceu no alto rio Juruá quase seis (6) meses explorando principalmente as florestas localizadas ao longo do rio Juruá-Mirim.

(Artigo continua…)

Para saber mais:
– As sementes da discórdia, por Carlos Haag, publicada na Revista de Pesquisa Fapesp, 2009.
– Biography of Ernst Ule (1854-1915), por Hermann Harms, publicada em Verhand. des bot.
Vereins der Prov. Brandenburg, 1916 (Em inglês, 2016). – Brazil and the Struggle for Rubber, por Warren Dean, Cambridge University Press, 2008.

Evandro Ferreira, Pesquisador do INPA e do Parque Zoobotânico da UFAC.

A Gazeta do Acre: