A jornalista acreana Maria Meirelles, 30 anos, emocionou inúmeras pessoas, ao publicar, na última quinta-feira, 5, nas redes sociais, um depoimento em que fala sobre um abuso sexual sofrido quando tinha cerca de 12 anos de idade.
De acordo com Maria, foram 18 anos carregando uma culpa que não pertencia a ela, e somente após um processo de cura por meio da integração entre a medicina da floresta, através da Ayahuasca, e a Umbanda, foi que ela conseguiu se perdoar e entender, de fato, que a culpa do ocorrido é somente do abusador. Assim como em 85,2% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes registrados em 2020 no Brasil o abusador era um conhecido da família, na vida de Maria não foi diferente.
“Foi o namorado de uma tia [o autor do abuso] e eu me culpei por muitos anos, porque eu achava que a culpa era minha, porque eu queria dormir na sala assistindo televisão, e aí eu não quis dormir no quarto. Então eu achava que a culpa era minha, porque eu poderia ter evitado. Eu não consegui falar [na época], porque eu lembro de ter ouvido em algum momento meu pai comentar ‘ah, se um dia alguém fizer um negócio desses com uma filha minha, eu mato’, e eu pensava: ‘Meu Deus, o meu pai vai ser preso, então eu não quero meu pai preso’. Então eu guardei isso pra mim’, conta ela.
Maria também aproveitou para fazer um alerta aos pais. “É preciso que os pais tenham muita atenção com o que eles falam na frente dos filhos, porque às vezes você incentiva o filho a falar, mas em uma fala espontânea sua, você reprime a criança, porque uma criança não entende que é uma linguagem de expressão e ela leva ao pé da letra”, diz ela, acrescentando ainda que soube de uma outra criança que o homem também abusou. “Eu me senti ainda mais culpada, porque eu achava que se eu tivesse falado, eu poderia ter evitado, mas eu não consegui falar”, lamenta.
Questionada sobre como conseguiu lidar com a questão ainda tão jovem, ela confessa que não sabe como conseguiu, mas que colocou uma “pedra” no assunto e não se permitia pensar no ocorrido, por medo do que isso poderia gerar.
O processo de cura de Maria não foi simples. Ele começou há cerca de três anos, quando ela conheceu a Umbanda, e só então, conseguiu olhar mais para dentro de si entender como os traumas do passado afetaram sua jornada.
“Quando eu cheguei na umbanda, eu estava bem quebrada por questões pessoais e, depois de seis meses, eu comecei a frequentar e resolvi entrar, e no terreiro que eu frequento, que é a tenda de Umbanda Luz da Vida, a gente trabalha muito a reforma íntima, que é uma busca por a gente mesmo. E eu comecei a buscar por mim, porque quando eu cheguei lá, eu estava tão desmontada que eu não sabia quem eu era, e, nesse processo, eu fui percebendo que eu criei muitas facetas em decorrência das situações que eu passei na minha vida. Eu fui me despindo dessas facetas aos poucos, e uma das últimas que eu me despi foi essa [abuso], que foi justamente um trabalho com a Ayahuasca, com a medicina da floresta, conduzida por um cacique Huni Kuin. Nós fizemos uma vivência de integração entre umbanda e saberes dos povos indígenas, na tenda Luz da Vida, e esse assunto retornou pra mim. Nesse dia, eu disse ‘tô cansada de carregar esse peso, eu não quero mais carregar essa culpa’ e me veio tudo o que eu tinha criado, por causa dessas culpa, as formas de autodefesa, que criei por conta dessa situação. Eu entendi que não tinha como voltar no passado e desfazer esse momento, mas que eu tinha como me perdoar, porque eu era uma criança e não tinha culpa”, relata ela.
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Força para outras mulheres
Se você é mulher, com certeza conhece alguma outra que já foi vítima de abuso sexual em suas mais variadas formas ou, caso não conheça, talvez você seja uma dessas vítimas. São mulheres em todo o mundo, especialmente no Brasil, que sofrem sozinhas silenciadas pelo medo de serem culpadas pelos abusos, enquanto os verdadeiros culpados, na maioria das vezes, estão vivendo livremente em sociedade.
Por isso, Maria decidiu reunir forças e gravar seu depoimento. “Eu resolvi gravar esse vídeo pra que as mulheres que passaram por situações como essa também se perdoem, porque, infelizmente, a vítima se culpa pela violência, porque a gente sabe que a culpa não é nossa, a vítima nunca tem culpa”.
“A ideia do vídeo é que outras mulheres possam se acolher, buscar ajuda, falar sobre isso, buscar ajuda profissional, terapia, seus direitos, denunciar, porque pessoas que cometem esse tipo de ato tem que ser presas, denunciar, estimular que outras mulheres conversem sobre isso, porque, infelizmente, é mais comum do que se imagina, seja do estupro consumado ao toque, porque isso causa sequelas muito grandes”, finaliza ela.
O que caracteriza a violência sexual?
Embora muitas pessoas ainda pensem que violência sexual trata-se apenas de estupro, a violência sexual pode ser caracterizada por qualquer ato ou contato sexual onde a vítima é usada para a gratificação sexual de seu agressor sem seu consentimento, com uso da força, intimidação, coerção, chantagem, suborno, manipulação, ameaça, ou ainda o aproveitamento de situação de vulnerabilidade.
Os traumas vividos pelas vítimas, em especial de estupro, podem deixar sequelas tanto no campo físico – como lesões nos órgãos genitais, contusões e fraturas, alterações gastrointestinais, infecções do trato reprodutivo, gravidez indesejada e a contração de doenças sexualmente transmissíveis – quanto na saúde mental – o estupro pode resultar em diversos transtornos, tais como depressão, disfunção sexual, ansiedade, transtornos alimentares, uso de drogas ilícitas, tentativas de suicídio e síndrome de estresse pós-traumático.
Casos de violência sexual na pandemia
Apesar do número elevado de casos no Brasil, na pandemia, as estatísticas sobre violência sexual apontam para a redução de casos, o que não significa uma redução real, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, isto porque, crimes sexuais apresentam altíssima subnotificação, e a falta de pesquisas periódicas de vitimização tornam ainda mais difícil sua mensuração.
Infelizmente, a capital acreana caminha na contração da suposta redução em nível nacional. De acordo com a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, em 2020 foram instaurados 305 procedimentos para apurar crimes de violência sexual contra menores, o que significa dizer que as ocorrências do tipo mais que dobraram em relação a 2019 que teve 126 procedimentos investigatórios instaurados.
À nossa reportagem, a delegada responsável pela delegacia, Juliana de Angelis, declarou: “[na pandemia] As pessoas ficaram mais tempo em casa. A questão socioeconômica também foi muito afetada, aumentou o consumo de bebida alcoólica em casa, tudo isso influenciou [o aumento de casos de violência sexual]”, explica.
Como denunciar
Qualquer pessoa pode denunciar crimes de violência sexual e um dos meios mais fáceis é pelo telefone. O número 181 é o disque denúncia do Estado do Acre. Já o Disque 100 é o canal do governo federal, que além de receber denúncias sobre crimes praticados contra crianças e adolescentes, analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos em geral, como relacionados a pessoas idosas, com deficiência, em restrição de liberdade, entre outros.
Já para denúncias no momento do fato, o número 190 ainda é a melhor opção. No Acre, a polícia também conta com atendimento via aplicativo Telegram. Para registrar uma ocorrencia por este meio, basta baixar no Google Play ou na AppeStore o aplicativo “Telegram” e após fazer o registro no app, é preciso clicar na lupa e buscar “PM_AC_190” e digitar uma mensagem para iniciar o atendimento, que é ofertado 24 horas por dia, todos os dias da semana.
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