“Todo brasileiro tem: tem sangue crioulo”. (Macau)
Talvez alguém ache desnecessário que uma “suposta branca” diga o que pensa sobre um espetáculo como este. “Pretas: da escravidão à resistência”, dirigido por Sandra Buh e James Fernandes, não é uma partilha valiosa para poucos – não foi feito para que apenas alguns entendam ou prestigiem. E talvez para dizer isso com mais credibilidade, se faça necessário que eu me apresente brevemente – não sou negra, mas preciso dizer que me reconheço como não representante de ideais de beleza exigentes e eurocêntricos da atualidade; sou mãe solo; filha de estrangeiros e artista desviante em suas buscas autorais.
Este musical é uma obra que amplia o lugar de fala pela empatia, não fica parado na discussão dicotômica: é fruto da beleza da fragilidade, reflete depoimentos tão nossos – de todos nós. Qualquer mulher, pessoa, bicho, mosquito ou planta – e não é piada meu modo de dizer – que possa reconhecer esse padrão discriminatório presente na sociedade, no dia-a-dia, não tem como não se emocionar com as vísceras expostas em cada letra, canto ou palavra.
Me vi em muitos momentos, momentos em que o que há de pouco retinto em mim, biologicamente falando, saiu pra fora da lógica do racismo, gritando que o racismo existe sim em diversos contextos, e que ele é desculpa para reforçar a desigualdade e manter privilégios descabidos. A arte tem disso, desperta e põe lupa onde ninguém tinha visto – por isso mesmo, é uma mágica.
Não tenho ascendentes negros, pelo menos não diretamente: do povo mais antigo deste planeta, que muita gente nega fazer parte da história. Mas o racismo atravessa o cotidiano de muita gente alienada sempre e todos os dias, sem que se diga uma palavra sequer. Então, o que posso dizer: é que enquanto as atrizes/cantoras Kétila Flor, Mara Matero, Narjara Saab e Maya iam se despindo de sua carne barata sem falsos consentimentos, eu ia me lembrando de muitas coisas que a mim também já aconteceram. Elas falavam de mim também: de quando vi meu filho sofrer violência porque eu não era loira, por isso não estava autorizada a ser sua mãe biológica, por exemplo. E em tons de desprezo, ele presenciava que alguém dissesse com muito desdém: “É filho de quem?”. Curiosamente, sempre era outra mulher para indicar e insinuar de que eu, não era merecedora de um bebê de tal beleza. Entendam a urgência de se falar destes assuntos, de uma vez por todas. Pasmem, esse país é mais racista do que a maioria consegue ver. Me veio também à cabeça o quanto as pessoas que amo e que fizeram parte da minha história e mais me ensinaram sobre cuidado eram todas negras – por que será? pergunto agora eu, em resposta ao que as atrizes nos perguntam na peça…
É sobre ser negra, mas é também sobre a crueldade desmedida do preconceito que as pessoas ditas “normais”, ou que se reconhecem melhores que outras sei lá por quê, são capazes de fazer sem nenhum pudor. Sobre como o homem como ideal de patriarcado também define normalidade e a maioria aceita e legitima, sem se dar conta; porque é uma inércia o que vivemos: uma naturalização da violência que nos faz paralisar, nos faz sermos incapazes de imaginar outra realidade além da que está dada há tanto tempo. Vi todos os possíveis comentários sombrios, se manifestando na problematização dos discursos ali partilhados; me senti representada por ser mãe-solo e não querer ceder a ideais de beleza e de mulher casada como bem sucedida que eu não quero responder e tampouco corresponder.
Quem chegou a acreditar que o teatro sairia de moda, ou que ele não era mais necessário na pandemia precisa se deixar tomar por trabalhos assim: simples e, por isso profundos; desarmados. Arte que vai te pegando pela exposição do outro, que quando você se der conta, os discursos estarão saindo de sua boca: falas que há tanto tempo são caladas sem a sua autorização.
Enquanto elas cantavam a música “A carne mais barata do mercado é a carne negra”, eu me lembrava a todo instante, de uma vez que me perdi no centro de Caracas, na Venezuela e parei para pedir informação para um passante que me perguntou de onde eu era porque meu sotaque não era local e eu respondi que era brasileira, ele decidiu me beijar a força – atitude da qual pude responder à altura somente porque sou filha de chilenos e falo palavrões fluentemente; e não precisei parar para pensar em nenhum argumento que devolvi tão prontamente a essa violência. Essa é a visão que exportam da mulher brasileira: mulata – que inclui tudo que essa palavra diz, gostosa, fácil, puta que não cobra, boa de cama. E eu, estava sofrendo ali, no meio da rua, perdida nas ruas de outro país latino-americano que também é subjugado por esses mesmos modelos, as consequências disso; e podia “reclamar para o papa”, como se diz, não é?
Então, sinto dizer que, quem assiste e acha que não é público-alvo, afinal essa peça fala somente do sofrimento de pretas, então você deduz que não é com você que estão falando, você não entendeu que todos que aqui habitamos vivemos e construímos a mesma história juntos – sofremos os preconceitos das nossas próprias decisões cotidianas. Se você acha que isso não te acontece, acontece com alguém que você conhece, então é problema nosso. Sem xenofobismos, mas neste país, se você ainda não se deu conta, tudo que não é loiro de olhos azuis é retinto em algum grau – existe uma régua da branquitude presente o tempo todo nas relações.
Escrevo para dizer que, em arte, pelo menos para mim, menos é mais: que a delicadeza de se colocar em cena com as próprias histórias, pois que todas são um pouco nossas também, de cara limpa, vestida da coragem cotidiana que enfrenta a desigualdade toda hora, é teatro sensível e compõe história. Isso é mérito de muitas decisões despretensiosas, que não se pautaram na competição, mas na autenticidade e nas coerências dos discursos.
O negro na peça, no seu significado humano, ganhou outras cores do espectro do respeito a tudo que é diferente, as mulheres ganharam outras tonalidades, peles, cabelos, vulvas e buracos por onde sim podemos ter um olhar mais amplificado para a violência que permeia privilégios injustificados historicamente há tanto tempo. Obrigada meninas, por tudo isto. Teatro de peito, para se lambuzar, deitar e rolar e entender que de beleza entende quem sabe sobre as nuances do afeto. Isso é o feminino: é daí que tiramos nossa força, a vitalidade dos partos que não é feito de embate, é de luta com tantos lutos, do jeito que precisamos encontrar para solucionar imposições diárias para termos lugar no mundo. Falemos disso e não do quanto querem que sejamos guerreiras para a manutenção da violência. Manifestos de exaustão ao cansaço pela injustiça, com delicadezas. À revelia sim, mas como uma flor que nasce meio ao cimento, não como quem derruba uma árvore sem autorização, porque ela está “sujando” a calçada.
Teatro preto necessário, onde se pode entrar para chorar até a metade e se desejar-se preta até o fim – pois filhas do mesmo território sempre seremos, da mesma mãe terra – que é bege, preta, vermelha. Essa experiência cênica é digna de ficarmos cheias de si até transbordar da sensação de que se assim não for, algo se perdeu da história do nosso país. Parece um motivo digno para se fazer teatro: para que todo mundo possa se sentir “filho de Deus”, se assim realmente o desejar depois de tudo isso dito, mostrado e vivenciado… Quanta beleza! Escrevam com Oxum, a muitas mãos, a história do teatro brasileiro – que esse ato corajoso invada as escolas, mas que ganhe o mundo e outros estados também. Lindo de viver…
*Tânia Villarroel é professora de teatro, aromaterapeuta, taróloga e palhaça (…).
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