Talvez ele tenha conseguido, já, alguma maturidade pensante, embora ainda não se dê por vencido. Está muito longe da oitava década, a dos reis filósofos de Platão. Mas é oportuno observar que a idade não nos poupa mesmo. Como as árvores antigas, vamos morrendo, fisicamente, de cima para baixo, ainda que velhos pensamentos regurgitem e teimem em pular do barquinho grisalho para fazer parte de um escrito menor como este.
Para Aristóteles, o filósofo grego, os céus enviam mensagens importantes aos homens adormecidos, embora, para que o sonho tenha significado, seja preciso que os olhos, sob as pálpebras fechadas, não estejam voltados para a esquerda, nem para a direita, mas para a frente, o que costuma ser difícil de se conseguir. Na verdade, a vida, ou a passagem por ela, só terá valido a pena se estivermos sempre buscando sentidos dignificantes para as nossas ações. O óbvio, então, será caminhar com quem sabe marchar, ou vice-versa. Em frente.
Ele, por exemplo, tem aprendido a caminhar com os bons. O grande José Luiz Sigrist, professor de filosofia, pós-doutor em Bolonha, Itália, aos setenta e oito anos, do alto da sua dignidade de metro e oitenta, nos corredores da Academia, colocava um braço sobre os ombros do aluno e dizia ter muito ainda a aprender com aquele caboclo amazônico. Quanta humildade.
Certa vez, no entanto, um burrico espreitava o aprendiz a querer ouvir da sua alma – às vezes lúcida – explicações sobre como navegar, porque navegar é preciso, sempre, como na toada portuguesa. O pensador arteiro fez-lhe, então, observação enfática:
– Ora, irmão! Nunca fui dado a ouvir atrás das portas. Não por virtude, mas porque, realmente, não quero saber o que pensam de mim ou, para ser mais exato, o que dizem ao meu respeito, o que quase sempre é a mesma coisa. Posso imaginar as opiniões desagradáveis, pois somos aquilo que os outros precisam acreditar que somos. Por isso, nossa reputação está sempre sofrendo alterações drásticas, refletindo não apenas mudanças específicas em nós, mas tão somente uma mudança no estado de espírito dos que nos observam. – É claro que ele entendeu muito pouco, ou quase nada, em virtude do espírito vegetativo que lhe envolve as banhas. E o jovem pensador continuou quase que em monólogo com os seus moinhos de vento quixotescos.
– Alguns pensam de mim coisas escabrosas. Dizem que os meus projetos e escritos, em geral, são todos e exclusivamente pessoais, e não veem que os atuais caciques da tribo verde-amarela nunca o chamaram para fazer coisa alguma. Na real, ele ficou preso por oito anos numa sala branca. Enjoou as teorias. Passou a ler a ficção hispano-europeia moderna de Carlos Ruiz Zafón, notadamente em A Sombra do Vento. Ademais, não faria sentido, segundo há de se avaliar, pedir-lhes – aos patriarcas e matriarcas da casa de saber – de pires na mão, o favor da bênção desgraçada que seria conviver com gente tão altaneira. Estes não concordam com a mãe do pensador, nem com os seus irmãos, que ainda o querem muito bem. Outros veem o aprendiz de beletrista apenas enquanto um estorvo teórico vivo, e muito vivo, que teima em apontar aos hipócritas o caminho da verdade; a verdade que dói.
Certo é que o versejador aprendeu a andar modestamente, de olhos baixos, para não tropeçar e não ir ter com as fuças no chão da sua história comum. Não. Ele não vê a necessidade de se pavonear, ou de se preocupar com o efeito que possa vir a causar nas outras pessoas. É o que é e, no interior daquele espírito insondável, há uma luz pequenina que se diz dele, e tão somente dele. É a tal luz própria que os cometas e asteroides não têm. O beletrista aprendeu também alguma autodisciplina, o que o leva, inclusive, a não falar demais, apesar dos circundantes assim o exigirem. Só em alguns parcos momentos, a verdade, como o vento da friagem, bate-lhe no rosto e reclama de si a defesa intransigente.
Há, também, como o aludido poeta insano, aqueles que sentem dificuldade em olhar algumas pessoas nos olhos, porque aí veem apenas egoísmo, cobiça, medo ou bajulação.
Recebemos o nosso lugar no tempo, assim como recebemos os nossos olhos. Fracos, fortes, claros, estrábicos, a escolha não depende de nós. É esta uma época vesga, caolha feito Luiz Vaz de Camões. Felizmente, quando vários olhos veem tudo distorcido, nada lhes parece estranho, e só uma visão nítida é considerada anormal.
Senão vejamos a formação tosca a que os nossos moços e moças têm sido levados quando distribuem-lhes diplomas de nível superior antes que comecem sequer a pensar o racional equilibradamente. O mercado não poupa ninguém. A liquidez de Bauman assim o diz. Quem sabe tem que provar a si próprio e aos demais, ou irá para o limbo dos desesperados que buscam um lugar ao sol da meia-noite.
A crise de competência atual leva lideranças profanas a distribuir cargos e comendas entre fantoches e meirinhos despreparados, semialfabetizados, que quase colocam o ensino superior em marcha ré.
Acredita-se que, na maioria das instituições públicas de ensino superior, as figuras principais raramente se encontram. Em parte, por opção. Quanto menos se encontrarem, menor a probabilidade de inconveniências. Um, aí, não dirá ao outro que a sua democracia está bêbeda e intolerante ao amparar aqueles que desconhecem a verdadeira ciência, nosso fim e nosso meio, aquela que busca a felicidade para todos através da competência real e comprovada. Convém até mantê-los razoavelmente distantes, porque isso aumenta a importância dos intermediários que podem correr de um lado para o outro fazendo intriga e politicanalhice.
E, um dia, o aprendiz de tudo foi levado ao debate com um burocrata despótico. Construíram o seu primeiro inimigo. E construíram outros… A verdade, então, surgiu brilhante. E ele, como os antigos, passou a acreditar que as vitórias em discussões são inúteis. Às vezes, são apenas espetáculos sem cor. O que é falado sempre provoca maior cólera que o silêncio. Debates assim não convencem a muitos. Além do despeito que uma vitória desse tipo provoca, há também o problema do vencido. O derrotado, mesmo que chegue a compreender que está lutando contra a verdade, sofre porque o seu erro é publicamente exposto.
Pior foi que a pena encardida do crítico contumaz houve por bem dar título à matéria imensa, de duas páginas: Absolutamente certo!
Vigiai e orai, irmãos, pois não sabeis quando será chegado o dia ou a hora. Em verdade vos digo: a loucura dos inteligentes é sempre maior que a dos medíocres. Em outras palavras, nenhum relacionamento deverá ser tão marcadamente criminoso quanto o da aranha com a mosca.
Ah, sim!
Antes que ele desça das árvores e lá em cima deixe os seus irmãos símios se divertindo com a sua alforria relativa, atirará dardos infectados e fezes tardias na cabeça desses tantos réus que teimam em lhe fazer inocente.
Apodrecemos, sim, juntos, mas desunidos, perversos e impiedosos.
*Romancista, cronista, poeta e palestrante. Autor de ANJOS DO SOL POENTE (romance) e DOIS RAIOS DE SOL E MEIO PALMO DE LUA (crônicas), disponíveis pelo 68 99224 7231 (WhatsApp). Membro da Academia Acreana de Letras, Cadeia 27.