Foi por aquele tempo da morte do Coronel Plácido de Castro que chegou ao Acre o bom João Veloso, acompanhado da jovem esposa, Doninha, com uma pequena fortuna no alforje, deixada pelo pai, um próspero comerciante de Araripina, sertão pernambucano, que havia morrido de uma febre dessas que leva o sujeito em três ou quatro dias.
Já nos estertores, o velho, de uns cinqüenta e poucos anos, disse-lhe entre lágrimas tardias e as mãos nas mãos do filho único:
– Vá, meu filho. Esse lugar não é seu. Vejo muita tristeza nos seus olhos. Você é muito jovem e não merece ficar à mercê das saudades minha e da sua mãe que também já não é deste mundo. Suba no rumo do Belém do Pará, desça pelo Amazonas, entre pelo Purus e, depois, pelo Rio Acre, até um povoado chamado Xapuri. Lá você encontrará um primo meu de nome Vicente Invenção Pereira, um pequeno comerciante de couros e peles de animais silvestres. É um sujeito muito decente. Venda tudo o que temos por aqui e, lá, você e ele saberão o que fazer com o dinheiro que será seu… – Foram as últimas palavras de Miguel Marcelino Pereira, um cabra trabalhador que ganhou a vida debaixo de um sol de rachar, carregando cana, puxando bagaço e, depois, vendendo a preço baixo açúcar, mel, rapadura, alfinin, sal, farinha, arroz, feijão, jabá, pano, linha, agulha, querosene, lamparina, arreios, folhetos de cordel, e mais um bocado de bugiganga própria para o consumo do povo do sertão.
Uma semana em Recife, seis dias de viagem de navio e mais uma semana em Belém foram o suficiente para contornar uns problemas com os documentos e com o dinheiro, uns três mil contos de réis… Uma fortuna que, junto com a muié, seriam defendidas, se fosse a ocasião, no arranco do parabelo ou na ponta do punhá, no dizer de João Veloso.
Dois meses de viagem, depois de Belém e, enfim, chegaram ao Xapuri, um povoado que não dispunha de mais de dez ruas, mas com um comércio rico, em vista da quantidade de borracha de que dispunha a região nas mãos de uns turcos e portugueses muito conscientes de que não era lá tão importante preocupar-se com a vida de um magote de sertanejos que chegavam para viver ou morrer.
Já do palanque, o simpático ancoradouro de Xapuri, João viu um homem moreno claro e de uma cabeça bem grande e bicuda no rumo da frente, como a sua. Ele se aprochegou e disse:
– Sou João Veloso Pereira, filho do Miguel Marcelino, de Araripina.
– Pois não é! Mais não me diga! A cara dum é o focinho do outro. E a cuma vai ele por aquelas bandas?
– Meu pai está morto e me recomendou lhe encontrar aqui e, para a minha sorte, nem foi preciso procurar!…
– Que tristeza! Como é que Deus leva um homem bom daquele. Se viesse para cá, ficaria rico, com o tino que tinha para os negócios. Minha Nossa Senhora! Meu São Francisco do Canindé!
– Ah, sim! Esta é Maria das Dores, a Doninha, com quem sou casado.
– Ah, pois bom! Sou Vicente Invenção, seu primo e seu criado… Mas vamos rumando lá pra minha casa.
A casa ficava ali perto, no fim da rua do comércio, depois da antiga Intendência Boli-viana, ou Casa Branca. João e Vicente trataram de negócios na mesma noite e, no outro dia, já foram à casa do Coronel Vitorino Maia, herói da revolução contra os bolivianos, que, segundo souberam, não mais se sentia com coragem ou com forças para tocar o Seringal São Pedro, ainda muito perigoso em vista da existência de alguns índios que até começavam a fugir para o Peru.
– É o Seringal São Pedro, no Rio Xapuri. Fica tudo dentro. Um barracão de palha, um armazém com alguma mercadoria, uma casa de farinha, uma moenda de engenho puxada a boi, um paiol, dezoito burros, catorze reses, algum criame e a terra que mede cento e quarenta e seis léguas em quadra. São sessenta e duas colocações que, com esforço, rendem mil e trezentos contos por ano. Quero dois mil e quinhentos contos de réis em tudo e vou embora pra Manaus na semana que vem mesmo.
Feito o negócio, foi passado e dado o recibo com selo assinado por João Castelo Branco, tabelião da comarca.
Passaram-se alguns tempos de muita labuta e muito lucro. Em dez ou doze anos, João multiplicou por muitas vezes o que trouxe da herança do pai. Trabalhava dia e noite, pois, agora, já contava com quatro filhos: Epitácio, Caboclo, Carmem e Nenen.
Veio-lhe, então, uma madrugada trai-çoeira e a esposa morreu de uma asma contraída no eito enquanto, mesmo à noite, ajudava o marido a acumular a fortuna que crescia a olhos vistos.
A menina mais nova tinha seis anos e passou a ser cuidada por uma moça muito aten-ciosa que atendia pelo nome de Nazaré, filha mais velha de Francisco Abdoral, irmã de Marissanta e Belisária.
Os cuidados eram muitos e os meninos cresciam gordos e bem bonitos. Até que um dia o João se saiu muito bem, para um sujeito de poucas palavras:
– Olhe, Zeré! Você é moça solteira e desimpedida, zelosa e trabalhadeira, não é?
– Sou, sim!
– Entonces, vosmecê aproveita, arruma as trouxas e casa comigo, em Xapuri, no padre e no juiz, e nós já viaja amenhã.
– Nem concordo, nem deixo de concordar! Meu pai é que vai lhe arrespondê.
Era o que o véi queria. Um homem daqueles só o destino é que poderia colocar no caminho de uma filha tão boa como a Zeré… Casaram-se e a riqueza só aumentava.
João Veloso adquiriu, a preço de ocasião, um outro seringal a que deu o nome de Nossa Senhora de Nazaré, para homenagear a esposa nova, a pedido de Padre Felipe, o pároco de Xapuri.
Alguns anos depois, com a renda das duas propriedades mais velhas, adquiriu o Palmarizinho, já no Rio Acre.
Naquele tempo, mais cinco filhos já haviam chegado ao mundo: Estácio, Lafaete, João, Ruzevelto e Maria das Graças. Os mais velhos, já adultos, ficaram tomando de conta dos seringais São Pedro e Nazaré e as filhas do primeiro casamento vieram estudar no Colégio Divina Providência.
Como se não bastasse tanta bondade, o agora Seu Veloso levou para junto de si uma das irmãs da mulher e mais o pai, e os alocou numa fazendinha do outro lado do Rio Acre, um pouquinho abaixo da sede do Palmarizinho.
De tanto subir, os negócios do Seu Veloso começaram agora a despencar, a declinar. Os meninos mais velhos não tinham o tal tino para ganhar dinheiro e os mais novos eram muito pequenos. Vieram as preocupações. Veio uma bronquite que se tornou crônica. O catarro do peito subiu de volume porque o cigarro porronca só contribuía para tal progresso. Em outubro de 1958, sob os cuidados do doutor Atel, o homem morreu num suntuoso bangalô, de sua propriedade, localizado na Rua Floriano Peixoto.
O declínio financeiro ocorreu com a venda, pelos filhos, das propriedades do Rio Xapuri. Mas faltava vir a derrocada fatal.
Nazaré, uma mulher de poucas letras, ficou com uma parte do dinheiro dos seringais mais velhos e, ainda, com o Palmarizinho, o que causou grande inveja à irmã Marissanta, agora casada com um traste de nome Raimundo Carneiro, irmão de outro traste, João Carneiro, ambos filhos de Zé Carneiro, agora todos amoitados na fazendinha herdada de Seu Veloso.
Um dia, Marissanta, fez proposta a Nazaré:
– Já que o teu filho João, de dezoito anos, gosta muito da minha Mariinha, já que ele pelejou e pelejou e findou arrancando o cabaço dela, e ela está buchuda dele, ela casa com ele e eu mais o Raimundo meu marido viremos morar com vocês no Palmarizinho, pra ajudar.
A proposta não foi aceita porque a vontade da viúva era arrendar o seringal e morar em Xapuri, no palacete adquirido pelo marido morto. Pior foi o fato de a família do lado de lá não ter tomado conhecimento da história.
Aí, quando Raimundo tomou ciência dos fatos, deu uma surra de umbigo de boi em Marissanta, botou Mariinha pra correr roçado adentro e jurou João Veloso Filho de morte, assim que o encontrasse. O outro João, irmão do insatisfeito, por sempre acalentar a vontade de ter para si a sobrinha como mulher, morto de ciúme, disse que o ajudaria a fazer o serviço pior. José, o pai dos dois, também deu o apoio de que eles precisavam para levar a cabo a ação final.
– Ora, eu caso com ela, com certeza, embora só tenha dezoito anos. Amanhã, eu atravesso o rio, de manhãzinha, e converso com eles. Não vai haver confusão nenhuma. Eu vou conversar direito com o pessoal de lá. – Foi o que disse o João à mãe sem saber que lhe armavam a tramóia que lhe daria fim à vida.
– Eu vou contigo! Eu e os meninos teus irmãos. – Respondeu a mãe preocupada.
E todos se aquietaram, menos João que, ali pelas cinco da tarde, sorrateiramente, pegou uma canoa e foi ter a conversa com a família da tia traidora que já concordara com a solução final.
À tardinha, no silêncio da floresta e do rio, qualquer batida mínima do remo na canoa é ouvida à distância considerável. Os que estavam lá em cima do barranco se aperceberam da aproximação de João Veloso Filho e se armaram. A vítima optou por subir atravessando um pequeno plantio de melancia e, depois, uma roça de macaxeira, indo dar na frente da casa de farinha, onde viu um pilão deitado e se sentou, na maior calma. Em seguida, por trás, sorrateiramente, o outro João, o tio enciumado, soltou-lhe uma pancada com um cacete de bater borracha, de maçaranduba, no meio da cabeça do jurado que não caiu mas, ao contrário, de posse de uma acha de lenha, passou a travar luta mortal contra o primeiro algoz. Foi então que Raimundo, o pai de Mariinha, vendo que o irmão levava desvantagem na contenda, mirou com uma espingarda calibre dezesseis os peitos da vítima e lhe meteu chumbo. O corpo caiu estrepitosamente, já morto. João, o assassino primeiro, então, desferiu-lhe mais umas três bordoadas na cabeça de forma a destampar-lhe o cérebro. José Carneiro, o avô, ainda deu uns chutes nas costelas da vítima, como para cumprir a sua parte na ação macabra.
O corpo foi velado no palacete da Rua Floriano Peixoto. As crianças do grupo escolar, localizado em frente à vivenda, entravam na sala e ficavam perplexas ao ver os miolos da vítima que caíam, pingando, numa bacia ali colocada para tal fim.
A única precaução contra os remorsos da morte é a inocência da vida. Uma cantiga russa de muitos séculos diz que das grandes traições é que podem se iniciar as grandes renovações. Ao fruto da inveja sem medida, da discórdia incontrolável e do declínio moral também deram o nome de João. Depois, com os três parentes mais velhos na cadeia e as mulheres sem condições de dar sustento às muitas crianças da família de assassinos, aos quatro anos de idade, o garotinho foi adotado por um casal de pastores evangélicos americanos, Mark e Fernanda Trimble, que o transformaram no atual jornalista e publicitário renomado de Montana, nos Estados Unidos da América.
* José Cláudio Mota Porfiro é escritor. Doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp. Autor de Janelas do Tempo; Tardiamente ou nunca mais; Literatura de Cordel, Alfabetização e Formação da Consciência Crítica; A Expropriação do Ser Numa Perspectiva Filosófico-Antropológica, dentre outros.