Não mais que de repente, desde a manhã do outono do século nascente, de um dia a perder de vista, vim a ser um humanista destes que em sentença mista dizem mil frases de amor. Impressionara-me, certamente, um gesto qualquer de um homem ou de uma mulher a fazer de si exemplo para os demais componentes pulsantes, viventes, atuantes sobre a Terra da humanidade. Vi, sim, a felicidade nos meus olhos sem ter que dirigir-me ao espelho da noite seguinte.
E o que é o ser humanista, hein!
É estar com os olhos a vislumbrar diuturnamente o presente e o devir do estágio do homem sobre a Terra. É como diz o pensador Henry Wells: sempre que vejo um adulto de bicicleta, volto a confiar no futuro da humanidade.
O humanismo foi um tempo perdido, e depois achado, na poeira do das horas em que o ser humano passou a ser mais valorizado que Deus. Nada mais teria acontecido pela influência do Divino. Tudo se tornara realidade por obra e graça do homem.
É assim mesmo. Há tempos em que a babaquice passa a ser coletiva. Felizmente, depois, tudo toma ares de normalidade, na graça de Deus.
Recordação trágica, então, levou-me a um tempo em que a masmorra nacional abrigou o poeta em lágrimas que declamava em alto e bom tom que gente é pra brilhar, gente é pra ser feliz.
Junto aos demais, lá também se encolhia de pavor o quase menino Caetano Veloso. Ia ele correndo e chorando e poetando com medo dos porões da ditadura militar brasileira, que do nosso convívio enxotou ou expurgou centenas de homens e mulheres de bom coração que, se não consertaram o mundo, ajudaram a fazer um Brasil até mais feliz. Do susto, do medo e da revolta contida pela chibata e pela corda de enforcar, o poeta foi parar em Londres, Inglaterra, onde viveu e voltou a se encantar pelo mundo dos homens e pela humanidade achada e nunca perdida, felizmente.
I’m wandering round and round nowhere to go. I’m lonely in London, London is lovely so…
Como o Caetano, também eu sou um humanista apaixonado destes que esperam a redenção do mundo através das boas obras que vêm, e continuarão a vir, das mãos dos bem-aventurados, homens e mulheres, que pensam e quase vivem vida dos demais, no bom sentido, é claro. O ser humano tem jeito, sim. O clichê escrito em bom português por Sarah – minha filha querida de catorze voltas ao redor do sol – dá ritmo à minha respiração ofegante, apaixonada, esperançosa: a esperança é a última que morre, segundo ela.
A Dalva Barbosa, amiga do meu maior afeto, depôs quase solenemente: nós devemos mudar o foco do nosso olhar para o outro que passa ali ao lado, às vezes, precisando apenas de um bom dia.
Daí porque me encanta ver um garoto pobre que atinge o ápice da sua glória humana infinitamente superior a si próprio. Fico, realmente, regozijado ao testemunhar quando um mais novo ou mais velho, sem berço e sem arrimo, vence os obstáculos e chega lá com a fímbria dos que lutam contra o leão do dia a dia até a grande vitória final quando, por exemplo, a Academia lhe outorga um título de Pós-Doutor, depois da construção de três ou quatro teses que buscam os melhores dias de vida e o bem comum e a verdadeira humanidade do homem simples que quer apenas ajudar e ser ajudado. É a glória de Deus que espia para muitos e se dá de presente aos realmente merecedores.
Encanta-me, sinceramente, ver o menino cruzeirense da marchetaria alemã e o garoto clássico pintor Des’Acre irem expor os seus trabalhos na Europa. É extasiante ver tantos quantos partem desta terra humilde e lá bem longe buscam e alcançam a glória almejada com tanto gosto. São casos de pessoas modestas minhas conhecidas que venceram na vida após derrotarem os felinos diários por anos a fio. É o filho do camponês que se fez médico, é a filha do estivador que se tornou engenheira, é o irmão mais novo do gari que agora dirige a grande estatal que exporta ouro e pérolas.
E lá se ia o Cordão da Bola Preta descendo rumo à Praça Onze. E de lá vinha, ao encontro, o Cacique de Ramos. No meio do largo, os dois blocos travavam a sua fantásticaguerra de serpentinas. Um, dois, cinco, oito homens brancos espalhados no meio do carnaval sambavam e cantavam e eram só felicidade e ginga em estilo puro nosso tupiniquim. Duas, três, seis moças louras eram só prosa no meio do turbilhão da euforia… Hum milhão e trocentos mulatos e mulatas, negros e negras eram felizes da mesma forma…
E lá cantava o Martinho: salve a mulatada brasileira… E recitava Vinícius uma poesia paraeste meu Brasil branco, mulato, preto como a pele macia de Oxum… Saravá!… Daí era o Chico que cantarolava um samba de enredo do tipo
…vai passar nessa avenida um samba popular / cada paralelepípedo da velha cidade hoje vai se arrepiar / ao lembrar que aqui passaram sambas imortais / que aqui sangraram pelos nossos pés e aqui sambaram nossos ancestrais…
Sou outra vez um humanista apaixonado de uma paixão efusiva e tardia que quase me leva à loucura. (Sim, talvez eu já seja um louco, pelo menos não aos olhos do Araripe, o meu psiquiatra modelar.) Fico feliz ao ver tudo isto, todos os anos, aqui ou lá onde o carnaval é o maior espetáculo da Terra.
Não dá pra esquecer que a fantasia foi paga ao longo de doze suados meses alimentados a feijão com arroz, sem carne. Mas brasileiro é mesmo assim, sem tirar nem pôr. É um povo em êxtase festiva e alegre que passa um pouco disso tudo aos demais humanos que vivem sob o sol e o sal desta terra bem amada. Lembra muito o Joãozinho Trinta que disse um dia que pobre gosta de luxo; quem gosta de lixo é intelectual. O negro no carnaval e na sua negritude é feliz, sim, e a sua felicidade contagia via satélite.
No meu local de trabalho, a Sandroca recebeu um ramalhete de flores no dia do seu aniversário. A ela eu dediquei um pequeno mimo, poesia minha que deságua num afeto extremado pela querida amiga. Depois, ela ganhou presentes e jantares e homenagens, sempre de olhos brilhantes, quase infantis, iluminados, talvez úmidos, festivos.
O ato de dar ou receber presentes me causa algum júbilo contido, até porque dizem de mim tímido demais. Então, penso, cá com os meus magros botões: se alguém presenteia ou é presenteado, significa que um está presente na vida do outro… E isto é muito bom. Sejamos felizes juntos!
O ato de ajudar mesmo à distância coloca no meu ser uma grande vontade de também fazer algo em benefício do ente que chora de fome na longínqua África, no Sudão ou no Senegal, dentre os outros tantos povos famintos deste mundo de Deus meu.
Um pai que beija a cabeça de um filho coloca em mim também mãos cheias da mesma ternura que trago no peito guardada e distribuída, muito carinhosamente, à turminha lá de casa. (É claro que às vezes o meu rosnar garante a harmonia em meio aos rapazes cheios de vida e de adrenalina que deve ser contida com pulsos firmes apesar da idade em alta.)
Uma ou duas lágrimas ainda se permitem rolar face abaixo do poeta Xapuri, quando lembra a mãe que passava de leve a mão sobre a cama do filho de modo a tornar o leito mais macio e confortável, enquanto ele contornava o mundo à procura de prazeres que sempre encontrou, aqui e ali, nos braços de uma diva formosa ou à mesa de um boteco qualquer.
Um cavalheiro que estende a mão ao outro e lhe pede desculpas me deixa vislumbrar lá longe, no fim do horizonte alaranjado, tal qual a Sarah e a Dalva, que o ser humano um dia será melhor que o foi na noite passada. Tenhamos esperança!
Um homem de quem uma lágrima lhe escorre aos olhos ao ver a cena de um drama ou de um romance no cinema causa em mim um sentimento a dizer que ainda fazemos parte compósita da feliz humanidade do humano.
Da mesma forma que eu tenho me apaixonado todos os dias pela felicidade e pela lástima que é o ser humano, também lampejos de uma paixão incontida me leva a acreditar que, de uma vez por todas, nós deveremos continuar respirando, porque ainda haveremos de aprender a cuidar do que nos foi deixado pelo Pai enquanto herança. Amém!
*José Cláudio Mota Porfiro foi dado à luz de um abril qualquer no Principado de Xapuri.