Ele estava afixado à parede do velho solar há pelo menos sessenta anos. Amarelecera. Cansara de ficar dependurado ali naquele canto por tanto tempo. Os bigodes caíam-lhe para dentro da boca. Algum bolor chegava a parecer catarro escorrido do grande nariz aquilino. Os olhos já não eram vistos devido o fluir da poeira do tempo. Já não aguentava mais.
À meia noite, dele para ele mesmo e para quem estivesse por perto, havia um revirar de olhos, um ranger de dentes, um arrastar de alpercatas de couro cru feitas ainda no Ceará. As tábuas do assoalho gemiam taciturnas sem que ninguém as pisasse. Um pigarro curto e grosso também era ouvido depois de anos em vida fumante. A gravata tornara-se uma mancha. O paletó era preto, a camisa branca, a foto era em preto e branco, obtida em um tempo distante, quando ainda não havia fotografia, mas tiravam-se retratos.
Os filhos se foram em busca de estudos e nunca mais voltaram nem em visita à casa paterna. Abandonaram os pais, à época, já com bastante ouro negro nos alforjes. Casaram-se, um no Rio de Janeiro e a menina em Belém. Nunca mais deram as caras, mas continuavam recebendo o dinheiro que o velho mandava para as suas contas no Banco da Lavoura.
A esposa libanesa desaparecera em meio a uma friagem seca de dez dias causadora de um surto de gripe forte que assolou o rincão e matou pra mais de dez velhinhos, só na pequena cidade. Depois do enterro, o velho encarquilhara ainda mais e já voltara pra casa com os bigodes brancos, tamanho foi o dilema.
Pela cidade, andava com as mãos para trás e os olhos postos no chão da sua história de rico dono de seringais a perder de vista. Dizia ele que gostava de manter a vista baixa, para não topar no pedregulho que lhe impunha uma vida antes tão calorosa e animada pela presença dos filhos pequenos, em alegria borbulhante à custa de muito dinheiro.
Arrendara a terra para um outro nordestino na base do meio a meio. O mais novo trabalhava e transformava tudo em dinheiro. Ele, bem mais velho, levava a sua metade e a guardava em um cofre forte de ferro fundido vindo de Belém do Pará. Como gastava pouco – a não ser o que mandava para os filhos e com alguns víveres para a sobrexistência miserável – o dinheiro exorbitava, vazava pelas beiradas dos alforjes de couro cru por ele próprio fabricados quando ainda moço… Uns duzentos.
O tempo passou com a rapidez de um maçarico de beira de rio de verão. Uma tumba antiga hoje é a sua morada na parte mais velha do cemitério da cidadezinha anciã. Jamais uma vela ali foi acesa por ninguém e muito menos pelos filhos que talvez já não tragam nem o seu sobrenome, Serzedelo. Não há uma rua ou uma viela no lugarejo que leve o nome do velho cearense de chapéu grande. Viveu mais de quarenta anos e vegetou outros trinta e poucos. Andava pelas ruas da cidadezinha com as mãos nos bolsos fartos e as vistas assentadas no chão da sua história de cachorro velho solitário. Tendo sofrido muito por esta vida de Deus, morreu sem conseguir aprender o mínimo sobre a arte de ser só, o que não é tão fácil, nem tão difícil, basta ensaiar.
É por isto que tenho visto por aí muitos a fazerem treinamentos diá-rios cujos objetivos são aprender a ser só, a viver sem nenhuma lástima do futuro que não foi construído com o cuidado e com a argamassa do amor. Se ele queria carinho, teria feito germinar e cultivaria bem querer, apego, afago, afeto. Mas assim não aconteceu. Dizia não ter encontrado tempo para certas mesuras com gente muito delicada, para ele, que era apenas um bronco muito fanático por ganhar um dinheiro que foi para as contas bancárias dos filhos que do pai sequer um dia chegaram a gostar.
Cá de minha parte, a velhice que há de vir não me parece, de modo algum, o melancólico vestíbulo da morte. A mim, ela se afigura, antes, com as verdadeiras férias grandes, depois do esgotamento dos sentidos, do coração e do espírito que foi a vida. Pare o mundo que eu quero descer. Será chegada a minha hora e a minha vez. (Deixa está! Quem não quer ficar velho deve morrer enquanto moço. Receita facílima.)
Sabemos que tudo neste mundo depende do esforço que empreendemos para o alcance dos nossos objetivos. Está claro que o meu poder de concentração há de me levar longe demais. Não devo perder o foco. Por isto, quando não mais me quiserem enquanto diretor de coisa alguma, para os tempos de inverno da minha existência, guardei uma nova profissão que se fará bem rentável, em termos financeiros mesmo.
Volto-me a ti, mais uma vez, ó pecador contumaz!
Há um treino diário através do qual tu te tens tornado um escritor de meia pataca, mas que defenderá o teu milhão de dólares vorazmente, uma vez que sonhar vem de Deus e é sempre na base do zero oitocentos. Ademais, a cada dia ficas mais fera no campo da cibernética. Noto até que aprendeste o excel e cloud computing. Nunca tiveste medo dessa máquina dos infernos chamada computador. Na verdade, praticas um puta exercício para que os neurônios não morram colados um ao outro ou emparedados em cérebro pouco produtivo. Fazendo uso de gíria antiga, aos setenta, daqui a vinte e poucas voltas, ainda estarás na crista da onda e irás para a balada curtir um rock n’roll… Afinal, as academias de ginástica e os suplementos existem para nos deixar prazenteiros até o fim dos dias.
Quer aprender a ser só? Viajar por aí sozinho já é um bom exercício. Nas últimas férias, por exemplo, tu ficaste por vinte dias no Rio de Janeiro a meditar sobre as coisas da vida, acerca da razão e da emoção que já voa para longe de ti, esta última. Refletiste a respeito das paixões e das aventuras por esta vida mundana, sobre os últimos acontecimentos que envolveram o coração vagabundo, isto, é claro, entre um chopinho e outro porque também vós não sois de ferro.
É bom olhar com carinho as palavras do Millôr. Saber envelhecer é a obra-prima da sabedoria e um dos capítulos mais difíceis na grande arte de viver. Um homem começa a ficar velho quando já prefere andar só do que mal acompanhado.
Tu tens vivido, por último, a lembrar que, no romance Cem anos de solidão, Gabriel Garcia Marquez deixa registrado que o segredo de uma velhice agradável consiste apenas na assinatura de um honroso pacto com a solidão.
Sem querer radicalizar, não é necessário ficares preso a fórmulas como a que prega que há apenas uma diferença entre o lobo e o homem, na velhice. Enquanto o lobo entra nos bosques para esperar o seu fim sozinho, o homem, quanto mais sente que a morte se aproxima, mais busca companhia, mesmo se ele se aborrece e se ela o aborrece.
Não há essa necessidade pequeno burguesa para os espíritos preparados para a solidão. De bem com a vida e ainda com o espelho, se é que tu conseguirás, ó camafeu, hás de pagar, do teu bolso, e não às expensas da previdência social, a bom dinheiro – cinco mil pratas, talvez! – uma bela e jovem atendente de enfermagem, sem nenhuma formação intelectual, que te fará o acompanhamento ao médico, além de uns carinhos quando os estimulantes sintéticos o permitirem. Deus te fez assim. Mariposo dos infernos! Segue o teu tempo e o teu caminho em paz, ó fauno mulherengo!
Afinal, haverá de prevalecer a máxima fora de moda segundo a qual o ancião merece respeito não pelos cabelos brancos ou pela idade, mas pelas tarefas e empenhos, trabalhos e suores do caminho já percorrido na vida.
É claro que tu muito o fizeste. Ide em paz e muitos te acompanharão até a tumba, se tiveres ainda algum dinheiro que se faça suficiente para pagar o velório e o féretro na maior orgia, na base do champanhe e ova de esturjão.
Ora! Viveste porque viveste… E bem, obrigado.
*Autor de Janelas do tempo, livro de crônicas; e O inverno dos anjos do sol poente, romance de viagem cujo foco maior é o Acre dos anos 40 e 50. Cronista do jornal A Gazeta, de Rio Branco, Acre: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br