Ai do vento se ali não fizer a curva. Vire brasa o céu se ali não cair a chuva. Toquem as trombetas porque um povo se agiganta. Desembainhem as espadas porque a luta será tanta, que o inimigo há de clamar por misericórdia. Eu sou Zé e Zé não é um só nem é tanto, é breu, cajá e paxiúba, canjica doce, feijão gurgutuba, paçoca e mugunzá. Sou um, sou dois, sou cem, sou metade do mundo e ninguém, nem queira me perguntar. Sou cabra de Xapuri, machado, maxixe, maduro e doce, no pipoco da bala ou no arranco da foice, dependurado nos sonhos meus… E tudo pode voltar a acontecer, como aconteceu outrora, quando conquistamos todos os louros buscados pela via do destemor… É preciso ter coragem, sim. E hoje ou amanhã, se for o caso, e por assim dizer, ainda poderemos voltar a lutar bravamente, com a mesma energia, sem recuar, sem cair, sem temer, como nos versos do Chico Mangabeira.
Xapuri é mesmo assim. Uma luz própria levemente ilumina as cabeças de todos e de cada um que um dia a graça de Deus houve por bem fazer nascer ali. É esse mesmo farol, de tamanho gigantesco que, além de fazer cintilar os filhos seus, deixa extasiados visitantes que sentem energias significativamente positivas no ar respirado a qualquer hora do dia ou da noite. Estrangeiros de outra origem, asiáticos e europeus, inclusive, sentem tais eflúvios e falam de uma certa bem aventurança que é derramada dos céus. Muito embora alguns dentre os rudes tentem obscurecer a essência do mito, em ali estando, muitos se sentem como se estivessem em Santiago de Compostela.
Voei, então, do aeroporto de Dumont ao Acre. Depois, a bordo do meu bólido japonês, no outro dia, às dez, já estava em Xapuri, para vivenciar com os conterrâneos os festejos alusivos ao Dia do Padroeiro, São Sebastião. Este é sempre um encontro marcadamente feliz de gente que já não se vê há dez ou mais anos.
Como membro de uma das famílias pioneiras da terra, sigo de uma para outra reunião, em casa de amigos de tempos já distantes. Tais encontros são, invariavelmente, regados a cerveja e a muitas recordações dos tempos idos da Princesinha do Acre. (Do contrário, eu nem iria!)
– Ô povo metido a besta! – É o que me diz um visitante da capital. – Pior é que eles se vangloriam, mas não mentem.
Na véspera, dezenove, estive por todo o dia a participar de um convescote com uma turma supimpa na residência de Tia Deise Salim Pinheiro de Lima, sob a batuta de um virtuse das artes do violão dedilhado e jamais batido, o Dircinei.
Para o almoço, começaram a chegar as celebridades das terras da princesa. Primeiro, fui cumprimentado pelo Regente da Banda de Música Municipal de Osasco, São Paulo, de nome Adalcimar. Este, quando garoto, foi escoteiro da tropa em que eu era monitor. A mãe gostava de promover bailes de forró, ambiente esse que fez surgir no garoto os pendores que o tornaram um dos grandes maestros do Brasil.
– Cláudio, meu amigo! Eu sai daqui para tocar na Banda do Quarto BIS. Depois, passei a tocar na Banda da PM do Acre. Um dia, resolvi fazer curso superior de música em São Paulo. Notaram em mim algum talento e, devagarzinho, fui conseguindo os espaços até que cheguei à batuta.
No dia anterior, ele e mais dezesseis músicos de São Paulo, catorze do nosso batalhão do Exército e doze da PM do Acre haviam feito um concerto ao ar livre para uma multidão que se reuniu no largo da Igreja Matriz. Foi aí que um raio de emoção me fez chorar a alma. O Raimundo Domingos, o Boy para os íntimos, ao violão, foi para a frente daquele grande número de músicos perfeccionistas e cantou Esse cara sou eu, aquela do Roberto Carlos. Nunca tinha visto aplausos tão demorados em terras do Acre. Aqui só se aplaude quando o artista realmente agrada. E foi o que aconteceu.
– Boy! Quando olhei pra trás e vi aquele monte de músicos me acompanhando, eu tremi as pernas, mas fui em frente. – Foram palavras do violonista excêntrico e apaixonado, também nascido em Xapuri.
Voltando ao convescote diurno na casa de Tia Deise, alguém me apresentou:
– Este é o Anselmo, um garoto nascido por aqui, originário dos barrancos do Rio Acre. Ele é piloto de boeings da TAM que voam entre o Rio de Janeiro, Paris e Tóquio.
– Caramba, garoto! Onde e como foi que você aprendeu tudo isso? – Foi o que saiu da minha surpresa.
– Ora, professor! A vida ensina e a gente coloca uns pingos nos is aqui, ajeita uns esses ali, faz uns arranjos acolá e vai aprendendo tudo, como eu ainda estou a aprender, inclusive a ser humilde, como o senhor, como todos nós de Xapuri.
Ao que eu completei:
– Você é show! Manda muito bem na teoria e na prática da vida simples tocada em busca de nuvens e de mares e de outros destinos do lado oposto da Terra. Que Deus lhe guie pelos melhores dos céus!
O nosso anfitrião é um rapazola de nome Jairo Salim, conhecido meu desde criança – ele – quando eu, de favor, o levava para assistir à matinê no antigo Cine Rialto junto com Joraí, o irmão advogado. De manhãzinha, em Xapuri, claro, ele se postava no portão da vivenda da Rua Floriano Peixoto e começava a tocar cavaquinho, isto, aos oito ou nove de idade. Impressionava. Depois, bem depois, veio morar em Rio Branco e a vida lhe foi dando um presente a cada dia. Tempos mais tarde, passei a me encontrar com ele, sempre no Dia do Padroeiro. Hoje, na Universidade de São Paulo, Campus de Ilha Solteira, chamam-no Jajá, o aguerrido professor doutor, diretor do Departamento de Engenharia Civil já por alguns mandatos. É exatamente este nosso Jajá, dono de uma estrela descomunal, que, num desses dias mais abençoados que os outros, houve por bem enviar o currículum vitae do atual prefeito de Rio Branco, Marcos Alexandre, seu aluno recém-formado, para análise pelo Governo do Estado do Acre. Ele veio, viu, trabalhou e venceu as eleições com votos que nem nos melhores sonhos ele um dia cogitou obter… Coisa de Deus!
Só para dar uma lembradinha, o ícone do ambientalismo moderno, conhecido em todo o planeta Terra, ainda é chamado Chico Mendes, um jovem seringueiro que não cortou seringa porque tinha uma perna menor que a outra e, desse jeito, não conseguia atravessar as pontes de açaizeiro que se interpunham em meio aos caminhos e estradas do Seringal Cachoeira. Em Rio Claro, há um parque ecológico que leva o nome dele. Em Porto Alegre, há uma estância ecológica que também traz o seu nome. Em Campinas, numa praça do centro da cidade, está plantada uma seringueira num grande jardim em homenagem ao ambientalista morto… Pelo Brasil afora, as pessoas mais sensíveis com a causa da ecologia reverenciam Chico Mendes e o mundo quase desolado ainda consegue lhe agradecer.
Alguém por aí conheceu o Maestro Zéca Torres? Os meus pais e avós foram vizinhos dele, desde os cueiros, na Rua 24 de Janeiro. O talento musical era tamanho que mesmo hoje, por todo o Brasil, ainda se ouvem os acordes das músicas compostas por ele… Compostas onde? Em Xapuri!
Naquele último 19 de janeiro, lá na terrinha, Tia Deise cantou uma melodia composta pelo velho maestro cujos versos eu copiei em papel amarrotado:
Minha princesa do Acre
Minha risonha cidade
Berço de grandes campanhas
Conquista da liberdade.
Xapuri, minha terra querida
O teu solo é também brasileiro
O teu grito de glórias passadas
Percorre o Brasil inteiro.
Tuas verdejantes florestas
Cheias de encantos sem par
Quisera aqui nestes versos
A tua beleza cantar.
Ninguém por aí viu o Océlio de Medeiros? Não. Ele morreu em 2010, não sem antes, depois de toda uma vida nonagenária de textos irônicos contra os mandões do Acre, publicar livros contra a devastação da natureza, bem como, sobre suas vítimas, como Chico Mendes. Ele é o maior cronista acreano de todas as épocas… Nascido em Xapuri.
Como dizia outro bom xapuriense, o Jorge Kalume, em outros lugares, tem-se talento, em Xapuri se tem luz própria. Como diz o Jairo Salim, o Jajá, em Xapuri, as mães vão para a maternidade dar à luz com o senso de grandeza e reponsabilidade e voltam para casa com a certeza do dever cumprido.
Depois, ainda no convescote ao pé da caramboleira, houveram por bem colocar entre as celebridades e falar o melhor possível de um sujeito confiado que diz por aí tecer as crônicas mais regadas de amor à terra.
Bença pai! Bença mãe! Graças a Deus, eu nasci em Xapuri.
*José Cláudio Mota Porfiro é um cronista esatrelado: www.claudioxapuri.blog.uol.com.br
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